Até meados da década de 1930, as infecções bacterianas especialmente as causadas por estrepto e estafilococos eram frequentes e temidas, pelas elevadas taxas de mortalidade. Não existia ainda nenhum medicamento capaz de combater eficientemente essas bactérias. Nos primeiros anos do século XX, o genial Paul Ehrlich (1854-1915) havia mostrado o caminho com seus estudos com corantes, desenvolvendo conceitos fundamentais em hematologia, imunologia e quimioterapia e criando a primeira droga efetiva contra uma bactéria, o Salvarsan, eficaz contra a sífilis.
Essa situação começou a mudar com Gerhard Johannes Paul Domagk (1895-1964), um médico alemão formado pela Universidade de Kiel. Em 1927 ele foi contratado pela IG Farbenindustrie, conglomerado farmacêutico de várias companhias, inclusive a Bayer Company. Na Farben, Domagk trabalhava com os químicos Fritz Mietzsch e Josef Klarer. Esses químicos, apoiados nas técnicas e conceitos de Ehrlich, pesquisavam corantes azo e estudaram e desenvolveram centenas de compostos químicos, até que em 1931 chegaram ao composto KL730, que tinha um radical sulfonamida e parecia ter efeitos antibacterianos. A substância, a sulfamidocrisoidina, recebeu o nome de Streptozon e, logo depois, de Prontosil Red.
A constatação dos efeitos contra as bactérias do Prontosil veio com os testes realizados por Domagk. No mais importante desses ensaios, ele inoculou cepas de estreptococos hemolíticos por via intraperitoneal em 26 camundongos. Ministrou o Prontosil a 12 deles por sonda gástrica e todos sobreviveram, enquanto que os outros 14 evoluíram rapidamente para o óbito. Domagk continuou pesquisando os efeitos antiesteptocócicos do Prontosil mas somente em 1935 é que publicou os resultados de suas pesquisas. Entretanto, apesar de agir contra as bactérias in vivo, a sulfamidocrisoidina não inibia o crescimento de bactérias in vitro.
No dia 04 de dezembro de 1935, a menina Hildegard, de 6 anos de idade, filha de Domagk, caiu de uma escada e uma agulha que carregava foi introduzida e quebrou dentro de sua mão. A agulha foi removida com sucesso em uma cirurgia, mas logo adveio uma infecção estreptocócica grave no local, com septicemia. A evolução da infecção levou os médicos que a acompanhavam a indicar a amputação da mão, numa tentativa desesperada de salvar a vida da criança. Na época não estava disponível nenhum medicamento com efeito antibacteriano.
Dada a gravidade da situação, na iminência de uma septicemia fatal e de um tratamento tão radical, Domagk deve ter vivido um grande dilema: sabia do efeito antiestreptocócico do Prontosil, mas não tinha experiência do seu uso e nem da toxidade em humanos. Mesmo assim, resolveu arriscar o uso Prontosil, para tentar tratar a infecção da pequena Hildegard. O resultado foi excelente, com regressão do processo infeccioso e total recuperação clínica da paciente.
Logo outros pesquisadores confirmaram a ação antiestreptocócica da sulfamida, como na febre puerperal, em que o medicamento reduziu acentuadamente a mortalidade da moléstia. Outras pesquisas mostraram que a substância ativa do Prontosil era um metabólito, a sulfanilamida, formado pela decomposição da sulfamidocrisoidina no organismo. A sulfanilamida era facilmente obtida por métodos químicos, o que facilitou a sua produção industrial.
No final de 1936, Franklin Roosevelt Jr, de 22 anos, filho do presidente dos Estados Unidos foi curado de um quadro séptico grave, decorrente de infecção amigdaliana, graças ao Prontosil, o que teve ampla repercussão fazendo com que a sulfonamida e Domagk se tornassem mundialmente conhecidos. O grande reconhecimento veio com a concessão do Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina de 1939 a Gerhard Domagk. Finalmente havia sido descoberta uma forma efetiva de tratar infecções bacterianas, que tinham altas taxas de mortalidade.
O governo nazista da Alemanha, entretanto, proibiu o cientista de receber o prêmio. Além disso, Domagk ficou preso durante uma semana pela Gestapo sendo obrigado a escrever uma carta recusando o prêmio. Só em 1947 ele pode finalmente ser agraciado com a honraria, sem, entretanto, receber a recompensa pecuniária.
Para saber mais sobre Paul Ehrlich e seus trabalhos revolucionários, sobre tratamento de infecções e sobre as suas pesquisas revolucionárias sobre os corantes, clique nos links abaixo:
Paul Ehrlich e os corantes: revolucionando a medicina
Paul Ehrlich e o 606: abrindo o caminho para a cura de doenças infecciosas
Referências:
1. Bickel, M.H. The Development of Sulfonamides (1932—1938) as a Focal Point in the History of Chemotherapy. Gcsnerus 45 (1988) 67-86.
2. Van Miert, A.S. The sulfonamide-diaminopyrimidine story. Journal of Veterinary Pharmacology and Therapeutics. 4, 1994, Vols. 17, 309-316.
3. Araujo, A.B.N. As doenças infeciosas e a História dos Antibióticos. Universidade do Porto, Portugal : Dissertação de Mestrado, 2013.
4. Wainwright, M. , Kristiansenb, J.E. On the 75th anniversary of Prontosil. Dyes and Pigments. 3, 2011, Vol. 88, pp. 231-234.
5. Gerhard Domagk. Science History Institute. [Online] 2017. [Citado em: 10 de julho de 2022.] https://www.sciencehistory.org/historical-profile/gerhard-domagk.
Parabéns novamente. Vamos ampliando o conhecimento e o saber graças às suas pesquisas. Obg
Parabéns Dr. Neto pelas pesquisas e pelos artigos publicados. Muito obrigado por incluir-me no rol dos destinatários desses trabalhos, também. Abraço grande. Nilson S. Coutinho.
Que história fantástica, a evolução da medicina misturada com o amor de pai do Dr. Domagk por sua filha Hildegard e injustiças cometidas a esse grande médico alemão. Aliás, muito bem escrita! Obrigada e parabéns Dr. Neto.
NETO Muito interessantes seus artigos mesclando dados científicos com fatos históricos sobre os envolvidos nas pesquisas. Que venham outros!
Fantástica história! Como fatos imprevistos e a dedicação incansável de alguns cientistas mudaram o rumo da Humanidade! Parabéns mais uma vez Neto! Muito bom! Abração
Parabéns Neto!
É sempre muito bom beber dessa taça de conhecimentos, de histórias tão significativas que marcaram nossa profissão.
Parabéns Neto pelo texto que mostra a dificuldade e incertezas da ciência, além da injustiça política sobre o cientista.
Excelente pesquisa, nela aprendemos a divina providência do acidente com a filha Hildegard que possibilitou a salvação de milhares até hoje em dia.
Parabéns Neto, você continua brilhante e nos enviando conhecimentos.