A medicina como ciência no século XVII

Rene Descartes

A chamada “revolução científica” surgiu na Europa no século XVII, como um processo de mudança radical do pensamento, do modo de entender e explicar a natureza. Os personagens que construíram essa revolução tinham consciência de que se tratava, como diz o historiador Paolo Rossi, “de um artefato ou um empreendimento coletivo, capaz de se desenvolver por si próprio, voltado para conhecer o mundo e intervir sobre o mundo.” 
René Descartes (1596-1650) foi uma figura chave no nascimento da ciência na Europa. No seu livro fundamental “Discours de la méthode pour bien conduire sa raison et chercher la verité dans les sciences”, que poderia ser traduzido como “Discurso do método para bem conduzir a razão e procurar a verdade na ciência”, conhecido simplesmente como Discurso do Método, ele aponta a necessidade da utilização do método baseado no rigor da matemática para encontrar a verdade na ciência e expõe quatro preceitos para isso: 1- não tomar nenhuma coisa por verdadeira sem que a conheça evidentemente como tal, 2- dividir cada uma das dificuldades a examinar em tantas parcelas quanto for necessário para melhor resolvê-las 3- conduzir os pensamentos por ordem, começando pelos objetos mais simples até ao conhecimento dos mais complexos e  4- proceder sempre em numerações tão completas e a revisões tão gerais, que se possa estar certo de nada ter omitido. 
Na mesma época e como parte do mesmo processo revolucionário, o conhecimento médico passou também por profundas modificações, especialmente nos campos da anatomia e fisiologia, construindo os fundamentos da medicina científica de nossos dias.

O microscópio de Robert Hooke



A invenção do microscópio proporcionou o desenvolvimento do conhecimento na medicina, ao associar o mundo invisível com doenças. Athanasius Kircher (1602-1680), publicou em 1658 Scrutinium pestis, no qual relata que o sangue de pacientes com peste estava cheio de “ninhos de vermes”.  Em 1669, Robert Hooke (1635-1703) fez a fundamental descoberta da célula, descrevendo a existência de “pequenas caixas de células, diferentes umas das outras” em determinados tecidos vegetais. Antonj van Leewenhoek (16.32-1723) e Marcello Malpighi (1628-1694) foram outros microscopistas com espírito científico e responsáveis por importantes avanços do conhecimento médico, na época. Malpighi foi quem descobriu os capilares sanguíneos, que viria a completar a descoberta de Harvey. 

Os ninhos de vermes descritos por Kircher em seu trabalho sobre a peste negra não poderia se referir ao bacilo causador da doença, impossível de ser detectado pelos microscópios da época, mas de qualquer forma era mais uma das proto-ideias que levariam ao descobrimento futuro dos micro-organismos e seu papel nas doenças.

No século XVII os médicos começam a buscar explicações mais complexas, na tentativa de se afastar das antigas doutrinas e passam a se apoiar em esquemas teóricos como tendências da doutrina fisiológica e seus dois ramos: a iatrofísica e a iatroquímica. Todavia, grande parte dos físicos ainda explicava as doenças com base na teoria do equilíbrio dos humores.

            Em meio a todas essas teorias, a luta prática contra as doenças continuava sem grandes avanços, mesmo porque havia uma evidente dissociação entre os preceitos teóricos e a prática da medicina. Nesse aspecto foi importante o aparecimento de Thomas Sydenham (1624-1689), que também foi um revolucionário, embora desse pouca importância prática às novas doutrinas. Na verdade ele recriou o método hipocrático da observação clínica minuciosa da sintomatologia, da evolução clínica das doenças para criar a fundamentação de novos conceitos em relação aos processos patológicos e de propugnar pela construção de um saber baseado na experiência. Pragmático, sua teoria em medicina era simples: acreditar no poder de observação ao pé do leito do doente e na experiência e no bom senso. (3)
          
       A descoberta da circulação do sangue por Harvey, a repetição e comprovação de seus experimentos por outros pesquisadores, o desenvolvimento do microscópio e de outros instrumentos não eram simples ações individuais, mas o desenvolvimento de um processo global de mudança de pensamento, no qual diversas descobertas, teorias, saberes se sucederiam, confrontariam e evoluiriam em direção a novos saberes e à consolidação do estilo de pensamento científico que se formava.

A busca de novas explicações para o funcionamento do organismo, mesmo enfrentando resistências relacionadas à autoridade dos antigos, ao ceticismo, ao risco de acusações de sacrilégio, levou à criação de teorias como a iatroquimica, a iatrofísica, o vitalismo, que estavam mais de acordo com o progresso do conhecimento que ocorria no século XVII. Era a época de Descartes, de Newton, de Bacon, do nascimento da ciência moderna na Europa. O desenvolvimento da química, da física, da matemática e o entendimento de seus fenômenos e leis favoreciam o desenvolvimento de doutrinas biológicas que aproveitassem esses conceitos. O vitalismo de Stahl surge em oposição aos conceitos cartesianos, buscando reunir a religião e a ciência. Para ele a vida não pode ser explicada apenas por fenômenos químicos ou físicos, é necessário um princípio vital, uma anima. Ressalte-se que Descartes, que tem o racionalismo como eixo de pensamento, não negava a existência de Deus, pelo contrário aponta provas da existência divina valendo-se da filosofia.

            Embora estivessem dissociadas do exercício prático da medicina e fossem facilmente sujeitas a contestações, querelas e antagonismos, essas teorias foram o ponto de partida de um movimento contínuo em direção a novos saberes. Diferentes coletivos de pensamento foram constituídos a partir da inconformidade com determinados conceitos visando a buscar explicação ou dar sustentação a teorias às quais se ajustassem as convicções desses sábios dos séculos XVII e XVIII. O estilo de pensamento médico desde a primeira metade do século XVII, ou seja, sua capacidade de reconhecer o fato científico de maneira característica, já se consolidara, sustentando-se na racionalidade, na experimentação, na comprovação metódica dos fenômenos e na aceitação da “verdade” científica somente quando comprovada.
Para ver sobre as teorias fisio
Bibliografia consultada
1. Rossi, Paolo. O nascimento da ciência moderna na Europa. [trad.] A Angonese. Bauru : Edusc, 2001.
2. Pinto, H. A Medicina no “Discurso do Método” de Descartes. Arquivos de Medicina- . 2009, Vol. 23, 1.
3. Garrison, FH.History of Medicine. 4ª. Philadelphia : W.B.Saunders Company, 1967.
4. Oliveira, MC e Donatelli, F. Descartes e os médicos. Scientiae studia. 2003, Vol. 1, 3, pp. 323-336.
7. Camargo Jr, Keneth R. Sobre palheiros, agulhas, doutores e o conhecimento médico: o estilo de pensamento dos clínicos. Cadernos de Saúde Pública. 2003, Vol. 19, 4, pp. 1163-1174.
8. Obregón, Diana.La construcción social del conocimiento: los casos de Kuhn y de Fleck. Revista Colombiana de Filosofia de la Ciência. 2003, Vol. 3, 6-7, pp. 41-58.
9. Pfuetzenreiter, Marcia Regina. Epistemologia de Ludwik Fleck como referencial para a pesquisa nas ciências aplicadas. Episteme. 2003, Vol. 16, pp. 111-135.
14. Kusugawa, S.Medicine in Western Europe in 1500. [A. do livro] Peter Elmer. [ed.] Peter Elmer. The healing arts: disease and society in Europe, 1500-1800. Manchester : Manchester University Press, 2004, pp. 1-26.
15. Mosse, Claude.As lições de Hipócrates. [A. do livro] J Le Goff. As doenças tem história. Lisboa : Terramar, 1997.
16. Renouard, PV.History of Medicine:from its origin to the nineteenth century, with an appendix, containing a philosophical and historical review of medicine to the present time . Cincinnatti : Moore, Wistach, Keys and co (Google’s books), 1856.
17. Entralgo, PL.Historia de la medicina. Barcelona : Masson, 1978.
18. Ferreira, LO.Das doutrinas à experimentação: rumos e metamorfoses da medicina no século XIX. Revista da SBHC. 1993, Vol. 10, pp. 43-52.

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

Este post tem 2 comentários

  1. Anônimo

    E mei grande mar faze o que né

  2. Anônimo

    Tio, você escreve muito bem, seja qual for o assunto. Passo algum tempo lendo seus textos. Muito bacana mesmo. Pedro

Deixe seu comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.