A (r)evolução da medicina como ciência no século XIX

Dentre as profundas transformações ocorridas no século XIX destaca-se o notável avanço no conhecimento científico na Medicina. A percepção medieval de morte, doença e saúde mudou em direção à valorização da vida terrena, à aceitação do progresso científico como forma de proporcionar bem-estar, à busca da manutenção da saúde e à compreensão de que a vida podia e devia ser prolongada. Criou-se uma visão otimista de que a evolução científica poderia ajudar a deter as enfermidades. Logo no começo do século XIX, a medicina saiu de fato do estado relativamente estacionário do conhecimento em que se encontrava. Oriundas principalmente da França e após a Revolução Francesa, novas descobertas desencadearam uma radical mudança na atitude médica. A França passou a ser o centro intelectual do mundo e esteve na vanguarda dos progressos científicos obtidos no campo da medicina, nesse período.

Laennec e o estetoscópio
 
O Inventum Novum de Auenbrugger

Em 1808, Jean Nicolas Corvisat, considerado o fundador da escola médica francesa, tomou conhecimento de um método descoberto pelo médico austríaco Leopold Auenbrugger, que havia publicado em 1761 uma obra chamada Inventum novum, de 95 páginas, sobre a utilização da percussão na clínica. Corvisat traduziu esta obra e acrescentou observações suas, que resultaram num trabalho de 440 páginas, que possibilitou a disseminação da nova técnica, através da qual, pelas nuances dos sons produzidos pela percussão no corpo do paciente, conseguia-se identificar alterações de órgãos internos, principalmente em tórax e abdome.

Em 1819, René Theophile Hyacinthe Laennec, discípulo de Corvisat, escreveu o Traité d’Ausculatation Mediate, em dois volumes, onde descrevia detalhadamente as doenças e os sons que elas provocavam, principalmente as dos aparelhos respiratório e circulatório. Suas observações eram baseadas no uso do estetoscópio (Stethos = tórax e Scopos = observador), que Laennec inventou em 1816. O trabalho de Laenec obteve ampla repercussão no meio científico, proporcionando-lhe grande prestígio.

o estetoscópio primitivo

Coube a outro médico vienense, Joseph Skoda a primazia e a genialidade de interrelacionar os diversos procedimentos clínicos já conhecidos, como o interrogatório, a inspeção, palpação, percussão e ausculta, para se chegar ao diagnóstico. Sua obra Tratado sobre a percussão e ausculta, publicado em 1839 é considerada a base do pensamento clínico moderno. Skoda foi brilhante diagnosticador, mas descrente das possibilidades de tratamento. Ele e seus seguidores eram partidários do que se convencionou chamar de nihilismo terapêutico. Afirmavam que “o melhor em medicina é não fazer nada”.

O tratado de percussão e ausculta de Joseph Skoda

Grandes avanços conceituais foram trazidos por Rudolph Virchow, que em 1855 demonstrou que todas as células são originadas de outras células e em 1858 estabeleceu o conceito fundamental de que a causa das doenças estava nas células. Talvez a grande revolução no conhecimento tenha sido mesmo a demonstração por Louis Pasteur em 1865 de que micro-organismos eram os causadores da fermentação e putrefação observada na fabricação de vinhos, o que levou ao estabelecimento da Teoria Microbiana das Doenças, na qual Robert Koch teve papel fundamental. A medicina passou a entender que pequenos seres microscópicos podiam provocar doenças.

As descobertas, invenções, e vários outros avanços no conhecimento sucediam-se rapidamente, como que libertando o saber represado por séculos e revolucionaram a medicina. O século XIX e o princípio do século XX são considerados a época de ouro da clínica. Essa revolução determinou a mudança da postura do médico, que deixou sua posição contemplativa, a biblioteca, a retórica e passou a examinar o paciente. Passou a correlacionar os achados da clínica com as alterações dos órgãos encontradas nas necrópsias. Passou a aceitar a teoria de que as doenças eram devidas a lesões de órgãos ou estruturas do corpo. O médico passou a perseguir o diagnóstico. O exame físico do doente, a inspeção, palpação, percussão e ausculta tornou-se mandatório, criando as bases do método clínico, utilizados até hoje.

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

Este post tem 3 comentários

  1. SONIA PIRES

    Esse artigo é muito interessante, em poucas palavras nos mostra o inicio de uma história maravilhosa! Sempre achei importante dar valor a história clinica e exame físico. È como desvendar um enigma, um mistério, mas como diz seu artigo a evolução da arte da medicina é importante. Então vieram os exames de imagem, laboratoriais e finalmente essa arte da percursão, ausculta e olhar o “jeitão” de cada doença (como dizia um médico pediatra com quem fiz residência) foram finalmente esquecido!
    Obrigada Neto por mostrar que esses métodos de diagnose tiveram a sua época de ouro!

  2. Lázaro Marques de Andrade

    Lázaro Marques de Andrade:
    Neto, a medicina no século 18 e 19 viveu, no meu pequeno conhecimento, uma grande crise desencadeada sobretudo pela “medicina heróica” que mais matava do que curava. Empregava o “calomelano” para desencadear melena e hematêmese, para assim liberar o “mal interno”, usava “cáusticos” para necrosar a pele e liberar o mal interno pela pele e faziam sangrias com o mesmo objetivo.
    Neste contexto, surgiu Samuel Hahnemann, criador da homeopatia. Hahnemann observou que não tratar era muito melhor para os pacientes. E neste contexto ele publicou em 1785, se não me falha a memória, no jornal de Hufeland, Alemanha, um artigo intitulado “Ensaio sobre um novo princípio terapêutico”. Neste ensaio ele recomendava usar os medicamentos de forma diluída: uma gota do princípio ativo para 99 partes de água e álcool.
    Hahneman procurou fundamentar sua teoria nos ensinamentos de Hipócrates: ,”similia similibus curantur”, curar pelos próprios agentes que provocavam as doenças. Utilizava uma gota do princípio ativo que provocavam a doença diluído em 99 partes de uma solução de água e álcool. Posteriormente esta diluição foi aumentando e ele acrescentou a dita “dinamização”: “saculejar” o medicamento 100 vezes após cada diluição, C1, C2, C3 …
    Já em finais do século 18, com o início dos trabalhos de epidemiologia e da metodologia científica, financiados sobretudo pela fundação Carnegie, Rockefeller e outras … a ênfase direcionou-se para a “medicina científica” e as praticas consideradas não científicas foram desestimuladas. entre elas “homeopatia, acupuntura , fitoterapia, a medicina popular, etc.” …
    Em 1960 a OMS concluiu que a “medicina subversiva, emergente, ou alternativa” era apropriada para existir nos atendimentos primários de saúde, por atender anseios da própria população, em seus desencantos com a medicina científica, quer pelo preço alto da mesma, quer pela falta de acolhimento humanizado.
    Amigo e colega Neto, essa minha visão reflete minhas lembranças da época em que eu fiquei na UFU, Uberlândia por seis meses, na década de 90, participando do curso de “Especialização para formação de docentes e pesquisadores em Homeopatia”, sob a orientação do professor Doutor Flávio Dantas.
    Abraço.

  3. Anônimo

    Extremamente interessante e informativo 👏🏻👏🏻👏🏻

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