Manuel Bandeira e a Tuberculose: A poesia e a doença

Pneumotórax

Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos,
A vida inteira que poderia ter sido e não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico.
Diga trinta e três.
Trinta e três… trinta e três… trinta e três…
Respire
O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo
e o pulmão direito infiltrado.
Então doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino

                O conhecido poema Pneumotórax, de Manuel Bandeira (1886-1968) foi publicado em 1930 e é uma clara referência à tuberculose pulmonar que o acometeu na adolescência e que o acompanhou por toda a vida, com reflexos importantes na sua poesia. Em uma crônica, Bandeira resumiu sua história pessoal com a doença.

Quando aos dezoito anos, adoeci de tuberculose pulmonar, não foi à maneira romântica, com fastio e rosas na face pálida. A moléstia “que não perdoava” (naquele tempo não havia antibióticos) caiu sobre mim como uma machadada de Brucutu. Fiquei logo entre a vida e a morte. E fiquei esperando a morte. Mas ela não vinha. Durante alguns anos andei pelo interior do Brasil em busca de melhoras. Pude assim verificar a verdade daquelas duras palavras de João da Ega: “Não há nada mais reles do que um bom clima.

                Eram tempos em que não havia tratamento para a tuberculose. E para um jovem de 18anos, ser e sentir-se tísico representou um grande baque, tanto físico, como emocional. Em 1905, ano seguinte ao do diagnóstico, morando com a família no Rio de Janeiro, o escritor apresentou um importante sangramento ao tossir. Essa grave hemoptise indicava um mau prognóstico. Todavia, contrariando as expectativas dos médicos, começou a apresentar alguma melhora clínica a partir daí e o pai, esperançoso, saiu em busca de melhores climas, uma das poucas recomendações que a medicina fazia para o tratamento naqueles primeiros anos do século XX. Campanha, no sul de Minas Gerais foi seu primeiro destino. Buscou tratar-se também nas serranas Teresópolis e Petrópolis e em cidades do Ceará, como Quixeramobim e Maranguape. Foi na sua estada em Campanha que Manuel Bandeira viu desabrochar o talento e a vocação para a poesia.

 No poema Desesperança, datado de 1912, pode-se notar a melancolia e a frustração causadas pelas limitações impostas pela enfermidade.

Esta manhã tem a tristeza de um crepúsculo.
Como dói um pesar em cada pensamento!
Ah, que penosa lassidão em cada músculo…

O silêncio é tão largo, é tão longo, é tão lento
Que dá medo… O ar, parado, incomoda, angustia…
Dir-se-ia que anda no ar um mau pressentimento.

Assim deverá ser a natureza um dia,
Quando a vida acabar e, astro apagado, a Terra
Rodar sobre si mesma estéril e vazia.

O demônio sutil das nevroses enterra
A sua agulha de aço em meu crânio doído.
Ouço a morte chamar-me e esse apelo me aterra…

Minha respiração se faz como um gemido.
Já não entendo a vida, e se mais a aprofundo,
Mais a descompreendo e não lhe acho sentido.

Por onde alongue o meu olhar de moribundo,
Tudo a meus olhos toma um doloroso aspecto:
E erro assim repelido e estrangeiro no mundo.

Vejo nele a feição fria de um desafeto.
Temo a monotonia e apreendo a mudança.
Sinto que a minha vida é sem fim, sem objeto…
— Ah, como dói viver quando falta a esperança!

Em 1913 foi tentar o tratamento na Suiça, no sanatório de Clavadel, construído poucos anos antes . O fato é que, com o tempo, a doença entrou em remissão, deixando importantes lesões fibróticas pulmonares.

Manuel Bandeira alude a esse estado no bem-humorado poema Temas e Voltas:

Em brigas não tomo parte,
A morros não subo não:
Que se nunca tive enfarte,
Só tenho meio pulmão.

No amor ainda tomo parte,
Mas não me esbaldo, isso não:
Que se nunca tive enfarte,
Só tenho meio pulmão.

De Eros a arriscada arte
Sempre usei com discrição:
Que se nunca tive enfarte,
Só tenho meio pulmão.

Bem que desejara amar-te
Sem medida nem razão.
Mas qual! Se não tive enfarte,
Só tenho meio pulmão.

Na imagem acima, o poeta é retratado fumando, apesar dos graves problemas pulmonares. A propósito do fumo, ele escreveu:

Fumo até quase não sentir mais que a brasa e a cinza em minha boca.
O fumo faz mal aos meus pulmões comidos pelas algas.
O fumo é amargo e abjeto. Fumo abençoado, que és amargo e abjeto!

No Brasil, especialmente no século XIX até as primeiras décadas do século XX, a doença chegou a ser chamada de O Mal dos Poetas, pelo grande número desses literatos que foram acometidos, como Casimiro de Abreu, Castro Alves, Álvares de Azevedo, Noel Rosa. Diferentemente deles, poetas vitimados pela tísica, em Manuel Bandeira foi a tuberculose que fez germinar a poesia.

Em Autorretrato, de 1948, o poeta maduro, deixa fluir uma melancolia autodepreciativa e bem-humorada.

Autorretrato

Provinciano que nunca soube
Escolher bem uma gravata;
Pernambucano a quem repugna
A faca do pernambucano;
Poeta ruim que na arte da prosa
Envelheceu na infância da arte,
E até mesmo escrevendo crônicas
Ficou cronista de província;
Arquiteto falhado, músico
Falhado (engoliu um dia
Um piano, mas o teclado
Ficou de fora); sem família,
Religião ou filosofia;
Mal tendo a inquietação de espírito
Que vem do sobrenatural,
E em matéria de profissão
Um tísico profissional.

O “tísico profissional” Manuel Bandeira morreu aos 82 anos de idade, em 13 de outubro de 1968, por conta de uma hemorragia digestiva.

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

Este post tem 11 comentários

  1. Lourdes De Marchi Capeletto

    Sua leitura é certeza de literatura de qualidade. Parabéns e obrigada, caro Neto.

  2. Lea

    Sempre um privilégio ler seu blog, muito obrigada por compartilhar comigo seus conhecimentos 👏👏👏👏👏👏👏

  3. Jurema Gomes Ferreira

    Às doenças da alma , que despertam com as doenças do corpo, ninguém entende mais que o médico poeta…

  4. Walkiria Lucas

    Texto maravilhoso como sempre. Me encanta a sua arte. Juntar medicina e poesia. Coisa de bom médico e bom historiador.

  5. Dione

    Muito bom conhecera história da doença e um pouquinho de Manuel Bandeira, homem que faz da doença, poesia e transmite com harmonia e suavidade os sentimentos que lhe dominam a mente nos momentos de desesperança.

  6. Rui Aparecido Tavares da Costa

    O isolamento faz brotar sutilezas. Ar(te) faz respirar. É sempre um bom momento ler seus textos. Abraços saudosos caro amigo.

  7. Ignez Santiago Lopes Carreiro Fiel

    Obrigado por compartilhar comigo essa joia, histórica e poéticas, tesouros que pouco vemos hoje em dia.

  8. Josiane de Sousa Tosi

    Parabéns pelo médico e pelo historiador. Adorei a leitura.

  9. JOYCE

    Dr. Neto, você, como sempre, competente e perspicaz em relacionar fatos históricos, medicina e arte. Parabéns pelo trabalho!

  10. CARLOS EDUARDO JANSEN MELO

    Neto, você sempre brilhante! O poema Desesperança é como um pré suicídio (hoje
    e com ou sem hífen?), de quase ligar pra funerária. Obrigado por nos ensinar sobre nosso(a) Bandeira.

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