A Bala Mágica de Paul Ehrlich

Vimos nos posts anteriores que Paul Ehrlich foi um dos fundadores da moderna hematologia e conseguiu uma coloração eficaz para identificação do bacilo da tuberculose, recém descoberto por Koch.* Em uma de suas experiências com corantes, Ehrlich notou que, ao injetar azul de metileno em uma veia da orelha de um coelho, o corante se difundia mas tendia a ficar concentrado em células ganglionares. Isso fez com que começasse a imaginar a possibilidade de que algum corante pudesse fixar-se seletivamente em micro-organismos. Esse foi o embrião, a ideia inicial do conceito que chamou de Magisken Kuger, a Bala Mágica, que ele definiu como sendo a substância capaz de encontrar o micróbio infiltrado onde quer que ele estivesse e destruí-lo sem causar danos ao organismo.

Paul Ehrlich
Paul Ehrlich

Ainda nessa linha de pensamento, Ehrlich desenvolveu a teoria segundo a qual as células teriam estruturas na sua superfície capazes de fixar substâncias estranhas ou toxinas. Essas estruturas, que ele chamou de cadeias laterais, seriam produzidas pelas células ante a presença dessas toxinas ou substâncias estranhas e em quantidade maior do que a necessária. O excedente seria lançado na corrente sanguínea, funcionando como proteção para infecções futuras. A ideia das cadeias laterais surgiu em 1885 na tese de habilitação apresentada por Ehrlich à Universidade de Leipzig sobre a necessidade de oxigênio do organismo (Das Sauerstoff-Bedurfniss des Organismus).

Representação das cadeias laterais de Paul Ehrlich
Representação das cadeias laterais de Paul Ehrlich

O tema foi retomado em 1897 de maneira mais elaborada no clássico “The assay of the activity of diphteria curative serum and its theoretical basis”. Nesse artigo, Ehrlich, que trabalhava assessorando Von Behring na busca de uma dose padrão de toxina antidiftérica, já argumentava que as cadeias laterais fazem parte de um sistema imunológico do organismo e apresenta a argumentação como uma “teoria”. Todo o seu trabalho posterior teve como base essa teoria. Ele acreditava que essas estruturas nas superfícies das células, as cadeias laterais, possuíam afinidade química, apenas por coincidência, a elementos estranhos, como as toxinas. Uma vez ligada à toxina, a célula produziria um grande número de cadeias laterais, com a finalidade de se ligar a mais toxinas. O excesso dessas estruturas produzidas se desprenderia da célula e cairia na corrente sanguínea, funcionando como antitoxinas, ou anticorpos, e na corrente sanguínea agiriam como que procurando novas toxinas. Em 1900 Ehrlich passou a chamar as cadeias laterais de receptores e formulou a imagem de chave e fechadura para explicar o seu funcionamento. Tais ideias com relação às cadeias laterais, que se ligam a antígenos, multiplicam-se para se ligar a novos antígenos são perfeitamente análogos aos atuais conceitos de receptores dos linfócitos B, responsáveis pela imunidade humoral, ou seja Ehrlich lançava, quase que intuitivamente, a ideia da teoria da seleção clonal. As concepções de Ehrlich em relação aos processos imunológicos certamente eram avançadas em relação ao seu tempo, e de seus trabalhos foram criadas as bases da imunologia como ciência, tal como hoje a conhecemos. Temos que atentar para o fato de que naquela época não havia evidência da existência física de anticorpos e o seu raciocínio e capacidade de teorizar, tornam a teoria quase profética.

O primeiro Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina (em 1901) foi concedido a Von Behring, pelas pesquisas com o soro antidiftérico, mas sabe-se que Paul Ehrlich estava entre os competidores mais fortes, justamente pela teoria das cadeias laterais. Ehrlich recebeu indicações oficiais para o Prêmio Nobel de Medicina todos os anos, de 1901 até 1909. Por sua contribuição na área da imunologia, foi finalmente condecorado com o Prêmio Nobel em 1908, dividido com Elia Metchnikoff, este pela descoberta da fagocitose. Como é comum na história das ciências, Ehrlich foi contestado por alguns contemporâneos, contestações que aliadas à ridicularização da ideia da chave e fechadura no meio médico, talvez tenham sido uma das causas de ter-lhe sido negada a honra sete anos antes.

Em 1912 e 1913 voltou a ser indicado para o prêmio, agora pela sua contribuição no tratamento da sífilis, o que será tema de um dos próximos posts.

Abaixo seguem outros posts sobre Paul Ehrlich.

Referências

1. Reyna OP. Paul Ehrlich: de las tinciones a las balas mágicas. Academia Nacional de Medicina Lima-Perú, Anales 2004; 200:108-16.
2. Schwartz RS. Paul Ehrlich´s Magic Bullets. N Engl J Med Overseas Ed 2004; 350(11):1079-80.
3. Venita J. Paul Ehrlich. Archives of Pathology and Laboratory Medicine 2001; 125:724-5.
4. Calvo A. Ehrlich y el concepto de “bala mágica”. Rev Esp Quimioter 2006; 19(1):90-2.
5. Drews J. Paul Ehrlich: Magister Mundi. 3 ed. Nature 2004; p.1-5.
6. Winau F, Westphal O, Winau R. In search of the magic bullet. Microbes Infect 2004; 6:786-9.
7. Prüll CR. Part of a scientific master plan? Paul Ehrlich and the origins of his receptor concept. Med Hist 2003; 47:332-56.
8. Bennett MR. The concept of transmitter receptors: 100 years on. Neuropharmacology 2000; 39(4):523-46.
9. Wiktop B. Paul Ehrlich and his Magic bullets – revisited . Proc Am Philos Soc 1999; 143(4):540-57.
10. The Nomination Database for the Nobel Prize in Physiology or Medicine, 1901-1951. Disponível neste link.
11. Gensini GF, Conti A, Lippi D. The contributions of Paul Ehrlich to infectious disease. J Infect 2007; 54:221-4.    

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

Este post tem um comentário

  1. Camila Santos

    A ciência é um dos desenvolvimentos mais belos e incríveis do homem. Nós seres humanos temos uma capacidade enorme de criação. O mundo é bom, mas poderíamos viver em um ainda melhor se usássemos nossos conhecimentos somente para o bem.

Deixe seu comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.