Philip Davis Marsden, Professor

HOMENAGEM AO MESTRE

O cavanhaque e o cachimbo eram os sinais mais visíveis daquele professor exótico que apareceu nos corredores do Hospital de Sobradinho. Surgiu como que saindo de uma nave espacial. Seu semblante demonstrava introspecção; baforava seu cachimbo pelos fundos do hospital, sempre pensativo. Os que tiveram a regalia de conviver mais proximamente daquela figura ímpar descobriam que era inglês e que fora condecorado com o título de Sir, mas não tinha ido receber a comenda, pois estava muito acima dessas futilidades terrenas. Pintava quadros magnificamente, assim como dançava e bebia com as matutas, quando saia para pesquisa de campo. Palestrou duas vezes na Real Academia de Medicina Inglesa, instituição de tamanho renome que basta um único convite para que o cientista ganhe status de referência no mundo médico. Nome deste pesquisador: Philip Marsden. Um dia, o residente estava realizando uma necrópsia em um cadáver a respeito do qual sabia tratar-se de um caso de leishimaniose visceral. Surge no recinto Philip Marden, jalecão branco amarrotado, calça xadrez de amarelo e preto, meias vermelhas, baforando seu inseparável cachimbo. Fica observando por alguns momentos, calado, e ao final solicita ao residente que seccione um gânglio. Tira dos bolsos do jaleco dois ratos vivos, esfrega os focinhos dos bichos no gânglio, coloca os ratos nos bolsos e vai saindo. O residente, sem entender muito bem, pergunta: “Professor! Não precisa do mosquito?” Responde Philip, depois de uma baforada: “Esta é que é a experiência!”
Rui Tavares

               A crônica de Rui Tavares acima foi a motivação deste post, ao trazer a lembrança de Phillip Davis Marsden, uma personalidade que não deve ser esquecida. Ele nasceu em Londres em 1933, lá concluiu o curso de medicina em 1956 e completou sua formação na conceituada London School of Tropical Medicine and Hygiene e toda a sua vida médica foi dedicada à Medicina Tropical. Foi um desses espíritos inquietos. Já no início da década de 1960 resolveu fazer suas investigações no próprio local das doenças. Pesquisou em Gambia, Uganda, Bahia, voltando por curtos períodos para Londres. Em 1973,  veio para a Universidade de Brasilia, a convite do Prof. Aluizio Prata, que conta que na ocasião, Marsden estava no Brasil, fazendo parte de uma missão inglesa e aceitou prontamente o convite, ficando por aqui do jeito que estava, sem se importar com o fato de que sua bagagem já tinha sido despachada de volta para a Inglaterra.
          Foi aí que o conhecemos. Nossa turma de faculdade, a turma barra 70 da Universidade de Brasília, estava “subindo” para Sobradinho justamente em 1973 para iniciar o treinamento prático, para nossos primeiros contatos com as doenças e doentes.  Ao mesmo tempo que nos assustamos com sua figura excêntrica, seu sotaque carregado, a dificuldade com a língua, nos encantamos com sua disponibilidade e capacidade de se fazer entender, com sua objetividade, informalidade e prazer em ensinar. Com o tempo percebemos que ele era realmente uma pessoa formidável. Todos nós, seus alunos da época temos belas recordações dele, não só do seu cachimbo, de suas roupas extravagantes, do seu fusquinha, mas principalmente da sua personalidade como mostrou o pediatra Rui Tavares, colega da turma barra 70, no seu texto. Era muito bom presenciar ou participar de uma atividade acadêmica em que ele estivesse presente, pela sua sagacidade, fina ironia, conhecimento e objetividade.  Nunca foi “estrela” ou reivindicou protagonismo.
                    Algumas características interessantes de sua personalidade são mostrados pela professora Raimunda Nonata Ribeiro Sampaio da Dermatologia da UnB, que escreveu, numa homenagem póstuma: “Ele foi agraciado com vários e honrosos títulos, como Chalmers Medal da Royal Society of Tropical Medicine and Hygiene (1973), OBE (1990) e Sir. Apesar de conquistar os títulos, parecia não lhes atribuir nenhuma importância.” Em outra ocasião Marsden, apareceu na porta do hospital universitário com alguns doentes que trouxera da Bahia no seu próprio automóvel. Conta a professora: “Chegou trajando roupas cáqui sujas de barro, um grande chapéu de palha e as célebres sandálias hawaianas. A universidade se havia mudado para outro hospital, hoje Hospital Universitário de Brasília, onde muitos professores eram, até então, pouco conhecidos. O guarda do Pronto Socorro não permitiu a entrada daquela figura estranha que se dizia médico. Então Phillip ligou para mim e disse com seu jeito muito peculiar: “o Raimunda, pede para seu marido que é diretor deste hospital dizer para este guarda que eu preciso internar nossos doentes”. Ele era assim, caridoso, humilde e despojado.”
              
            Outro barra 70 ilustre, o professor de Doenças Tropicais da Universidade Federal do Piauí, Carlos Henrique Costa, de quem Marsden era padrinho de casamento e com quem participou de vários projetos de pesquisa, diz que apesar dessa informalidade, ele era absolutamente metódico e disciplinado nas investigações e experimentos. Britânico. Conta ainda: “Ele foi meu amigo e orientador, um ser humano formidável. Absurdamente desprendido de valores materiais e bondoso com os mais pobres. Uma vez perguntei a ele e à Vanize*  se tinham sido bons alunos. Ela me disse que era aluna 100%. Ele me disse que quase foi expulso. Era genial” . O Prof. Carlos Henrique fez parte de uma grande turma de pesquisadores e professores que Marsden ajudou a formar e que usufruíram do  seu talento.
               
        Quem visse apenas a sua exótica figura não imaginaria que aquele professor da UnB era extremamente respeitado no meio científico internacional. Enaltecedendo a qualidade de suas mais de quatrocentas publicações, o professor Anthony Bryceson, da London School of Hygiene & Tropical Medicine em um artigo publicado no British Medical Journal em 1998, lembrava também da sua excentricidade, da aversão à glória, da abordagem direta, de seu vigor, entusiasmo e especialmente da capacidade de fazer parte da vida de seus doentes.  Era totalmente avesso à formalidades burocráticas e administrativas que, segundo ele, lhe tomavam o tempo de pensar e escrever. Gostava de ensinar a pensar. Ele entendeu como poucos o papel do professor. Costumava dizer que era um educador e um provocador. Pesquisava as doenças e ensinava a entender os doentes.
               
                Em 1987, um grave acidente de automóvel na Bahia quase o matou, levando a uma longa internação e a um doloroso tratamento, que suportou graças à dedicação de sua esposa Mariinha. As sequelas do acidente alteraram muito a sua qualidade de vida e limitaram sua atividade de campo nas áreas endêmicas. Mas ainda assim manteve por oito anos, uma coluna fixa no British Medical Journal chamada Letter from Brasília. 
          
            A última vez que o vi foi numa uma conferência sua, algum tempo depois, num evento da Associação Médica de Brasília. Começou pedindo desculpas pelo seu “insuportável sotaque britânico” e terminou ovacionado.
              Philip Davis Marsden morreu no dia 04 de outubro de 1997, em Brasília, vítima de um acidente vascular cerebral hemorrágico.
* Vanize Macedo foi outra formidável professora do Núcleo de Doenças Tropicais da UnB, que também já nos deixou. 
               

       

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

Este post tem 5 comentários

  1. Cesar Bittencourt

    Fui aluno desse grande mestre! Sentava ao lado dele nas reuniões clínicas do HUB. Uma pessoa divertidíssima! Inesquecível!
    Foi muito bom eu esbarrar com estes relatos aqui. Valeu!

  2. Anônimo

    Que bela narrativa sobre a vida de um ser humano tão nobre.

  3. Anônimo

    Belas palavras. "Tio Felipe", como eu chamava quando criança, foi casado com a minha tia Mariinha. Sempre brincalhão, com seu sotaque inconfundível, passava horas tomando caipirinha, fumando cachimbo e pintando lindos quadros, os quais ainda conservo nas paredes da minha casa. Só de escrever sobre ele, consigo ouvir sua voz chamando a minha tia. Até hoje minha tia sente muito sua falta. Foi um grande companheiro. Por coincidência, ou não, estou cursando mestrado em Doenças Infecciosas na Fiocruz, e lendo livros e artigos, lembrei que ele falava do professor Coura da Fiocruz. Sem dúvidas meu tio marcou minha infância. Saudades de um grande ser humano.

  4. Neto Geraldes

    É verdade, Douglas. A importância de gente como Marsden não se limita ao conhecimento técnico.

  5. Unknown

    Caro Neto Geraldes

    Há muita necessidade em divulgar professores competentes e talentosos como o prof.Philip Davis Marden. Por motivos de mérito, e, por que não dizer que exemplos como esse aceleram o resgate dos valores éticos e humanistas imprescindíveis na graduação médica, tão abandonados hoje em dia.

    Parabéns e muito obrigado Neto.

    Prof. Roberto Douglas

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