A fístula do rei Luis XIV

         

       O reinado de Luis XIV, de 1643 a 1715 foi o maior de toda a história da França e é o símbolo do poder absoluto das monarquias europeias do Antigo Regime. O Rei Sol, como ficou conhecido, tinha seu poder percebido como um direito humano, pela sua natureza, e divino, por concessão de Deus. Uma das expressões dessa sua relação com a divindade era sua taumaturgia, ou seu poder de curar pelo toque.(*)
As divinas proteção e taumaturgia, entretanto, não o livraram das doenças terrenas. Uma dessas doenças, a fístula anal que o acometeu em 1686, tornou-se um dos fatos históricos mais referenciados pela historiografia.  O historiador francês Jules Michelet (1798-1874), foi um dos primeiros a ver a importância histórica da fístula do rei e da influência da doença nas suas decisões, a ponto de dividir o reinado de Luis XIV em antes da fístula e depois da fístula.
Na época, o premier médecin, uma espécie de chefe médico do reino era Antoine D’Aquin, que foi o responsável pelo tratamento do rei e deixou relatos bastante interessantes sobre o enfrentamento da mazela.
       Escreveu D´Aquin que em 15 de janeiro de 1986, o rei se queixou de um pequeno tumor no períneo, “a dois dedos do ânus”, pouco sensível, que não o impedia de andar à cavalo. O crescimento e endurecimento da tumoração fez com que no início de fevereiro fosse iniciado o tratamento da lesão. Inicialmente foram empregados cataplasmas. Para “seguir as intenções da natureza” D’Aquin utilizou emplastros para promover a supuração da lesão, o que acabou acontecendo, deixando ferida ulcerada na região do períneo. Os tratamentos prosseguiram ora tentando cicatrizar a úlcera, ora tentando amolecer o tumor. Para melhorar o resultado do tratamento o rei começou a ser tratado com purgativos.
Em abril de 1686 foi feito o diagnóstico da fístula, colocando-se uma sonda na úlcera do períneo cuja extremidade foi percebida no intestino por meio de um toque retal. Os tratamentos prosseguiram, utilizando-se emplastros, cauterizações, punções com lancetas, purgativos, sangrias, com períodos de melhora e piora alternando-se ao longo do tempo. O insucesso na cura da lesão levou a que o rei fosse aconselhado a tratar a lesão cirurgicamente. 
instrumentos utilizados no procedimento
Durante algum tempo, o primeiro-cirurgião Charles-Francois Félix de Tassy, procurou doentes com lesões parecidas e testou várias técnicas cirúrgicas nesses pacientes.  
No dia 18 de novembro de 1686, Felix realizou a operação: com um bisturi fabricado especialmente para essa cirurgia, que foi enfiado na extremidade de uma sonda através da fístula e guiado pelo dedo introduzido no reto, o cirurgião seccionou a lesão intestinal fistulizada. Uma hora depois da cirurgia, o rei foi sangrado. No relato de D’Aquin, Luis XIV suportou tudo com dignidade. Leve-se em conta que o procedimento foi feito sem qualquer forma de anestesia, não havia nenhuma noção de assepsia e a higiene pessoal era muito deficiente. 
Três semanas depois foi feita nova intervenção para remover “calosidades” que haviam se formado na região anal e no períneo. Em janeiro, nova escarificação. Para consolidar a cura, o rei foi purgado algumas vezes. Ressalte-se que durante o período que durou o tratamento da fístula, Luis XIV sofreu algumas crises muito dolorosas de gota e foi acometido por uma febre recorrente, que foi medicada com sucesso com a utilização de quinino. Com tudo isso, a cirurgia foi bem sucedida, o rei recuperou-se e o cirurgião, que ocupava uma posição inferior à do médico, recebeu uma grande recompensa. 
        A recuperação do rei foi motivo de júbilo na corte. Vários nobres procuraram M. Felix na esperança de serem submetidos ao mesmo tratamento real.
O rei Luis XIV morreu em 1715, às vésperas do seu 77º aniversário, quase 30 anos depois da cirurgia da fístula anal.

(*) Para ler mais sobre os reis taumaturgos clique aqui.

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

Este post tem 4 comentários

  1. Anônimo

    Reis têm fístulas anais e pobres têm hemorróida. É tudo muito chique, mas é a mesma coisa, o que prova que sofremos todos dos mesmos males, já que somos todos IGUAIS.

  2. Unknown

    Aliás, gostei muito do seu blog!

    Muito bem escrito, assuntos interessantes e informações pertinentes revelando um homem culto e que sabe "enxergar" além da "mera letra"…

    Parabéns!!!

  3. Unknown

    Dr. Benedito Bernardes Neto, apreciei imensamente seu texto sobre a fístula de Luis XIV!

    Muito interessante mesmo!

    Celina.//♥

  4. Unknown

    Dr. Benedito Bernardes Neto, apreciei imensamente seu texto sobre a fístula de Luis XIV!

    Muito interessante mesmo!

    Celina.//♥

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