Friagem e outras causas da tuberculose no século XIX

O médico, escritor, historiador, teatrólogo e jornalista José Ricardo Pires de Almeida em 1885 publicou um texto, depois transformado em livro, que chamou de A tísica e os tísicos, que nos dá uma boa noção de um estilo de pensamento médico em relação à etiologia da tuberculose, no final do século XIX. O termo tísica era empregado para designar a tuberculose pulmonar.

Pires de Almeida destacava, embora se contradizendo a seguir, que a doença era mais frequente nas classes médias, em “que se está ao abrigo dos trabalhos obrigatórios e das imprudências de uma grande fortuna”. Da mesma forma, julgava ele que os climas temperados eram mais propícios ao desenvolvimento da tísica, mas ressalvava que em situações extremas o perigo era maior. Para o pobre, porque lhe faltava o indispensável e esgotava-se no trabalho, e para o rico, ao qual a fortuna, muitas vezes só servia para satisfazer caprichos que aumentavam os males.

Problema mesmo era nos casos das mulheres que cozinhavam e lavavam ao mesmo tempo, passando rapidamente da situação abrasadora do fogão para o frio da água, umedecendo mãos, pés e ventre, ou então sair do fogão e atravessar corredores frios, assim como as engomadeiras, que sofriam os efeitos do aquecimento do ferro e do trabalho braçal e sujeitas a rápidos resfriamentos, que eram, como garantia o Dr. Almeida, “a origem conhecida do maior número das tísicas.” Pisar descalça o chão ao levantar-se era imprudência que também favorecia o adoecimento. Ou seja, o médico atestava os perigos da “friagem”, que ainda hoje assombram o imaginário popular.

Dentro dessa linha, o Dr Pires de Almeida enumerava as profissões de alto risco para a tísica: os trabalhadores das estradas de ferro (pela exposição às intempéries), os pintores, os ferreiros, os forneiros, os confeiteiros, os foguistas, aqui muito provavelmente pelo mesmo motivo, a exposição ao calor e ao resfriamento. Também estavam expostos os fabricantes de charuto e de cigarros, os viajantes obrigados a respirar o pó das estradas, os cantores e atores que “puxavam pelo peito”.

Por outro lado, também estavam sujeitos à tuberculose pulmonar aqueles “que –consagrando-se aos trabalhos da intelligencia e do espirito- irritam o cérebro e os pulmões até perder o folego”, como  os médicos, os juízes, os advogados, os poetas . Situações que provocavam privação dos alimentos, privação de ar e luz, os isolamentos e os desgostos deveriam “necessariamente produzir a tísica”, assim como as desordens de conduta, havendo grande perigo para “os onanistas e para os que abusavam dos prazeres sensuais”.

Na época em que foi escrito o texto, em 1885, a teoria que responsabilizava os micro-organismos pelas doenças infecciosas já estava bem divulgada e desde março de 1882 o mundo sabia que o alemão Robert Koch havia descoberto o bacilo que causava a tuberculose e provado seu papel na etiologia da doença. Deve ter sido complicado, na mentalidade dos médicos entender e adotar as novas linhas de pensamento. Os conceitos não eram claros e era difícil libertar-se de paradigmas muito entranhados na sua forma de pensar.

Uma série de artigos publicados na Gazeta Médica da Bahia a partir de dezembro de 1882 pelo Dr. J. Remedios Monteiro ilustra bem esse conflito com as novas ideias, pois embora defendesse as teorias de Pasteur, não conseguia se livrar dos miasmas:

“As pesquizas modernas tendem a mostrar que entes vivos microscopicos, qualquer que seja o seu nome, se associam as doenças contagiosas, infectuosas e miasmáticas, e que essas doenças nunca se desenvolvem sem a presença do germen específico. Sendo os miasmas entes vivos, cujos germens espalham-se no ar, a marcha das epidemias torna-se tão fácil de ser explicada como a fecundação das plantas dioicas em grande distância pelo pollen levado pelo vento.” (…)“ A theoria dos germens explica ao menos melhor, como nenhuma outra hypothese o fez, o aparecimento, a transmissão e a marcha das epidemias pestilenciaes.
Nenhum mal pode advir, antes bem, da adopção, embora provisoria, da theoria dos germens. “

No discurso analisado, percebe-se que muito daquilo que chamamos de crendices populares tem sua origem no próprio pensamento médico. Médicos de antigamente divulgavam aconselhamentos, sustentavam teorias, que ficaram fixadas no imaginário popular. Essas teorias que hoje consideramos “erradas”, ultrapassadas, folclóricas, sem sustentação científica, podem ter sido criadas justamente pelo saber científico. Da mesma forma, muitas verdades de hoje serão destruídas pela ciência do futuro.

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

Este post tem 4 comentários

  1. José Ygor

    Olá Neto,
    Você teria a fonte da qual foi retirado o quadro de Pires de Almeida?
    Desde já agradeço,

  2. Pois é Luis. Essas explicações das causas de doenças infecciosas, vem de mais de 2000 anos, estão fortemente enraizados no imaginário popular e foram, em grande parte, difundidos pelos antigos médicos.

  3. Luís Alfredo

    É interessante notar que com todo o avanço da tecnologia, com todo conhecimento atual e da desmistificação de muitas destas crenças , ainda se mantém as mesmas ao longo dos anos. Isso eu constato em atendimento em Pronto Socorro, onde as avós ou mesmos as mães acreditam em determinados "tratamentos" ou "causas " para certas doenças.

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