Desbravando o coração: Werner Forssmann e o cateterismo cardíaco

Na história da medicina, são frequentes os episódios em que médicos se expõem como sujeitos de experimentos com a finalidade de comprovar teorias que visam ao aumento do conhecimento em terapêutica, etiologia e prognóstico de enfermidades. É impensável, nos dias de hoje, esse tipo de ação heroica, abnegada, muitas vezes intempestiva, afoita e até irresponsável; todavia, ações como essa propiciaram a base para muitos avanços fundamentais no saber médico. Um exemplo é o desenvolvimento do cateterismo cardíaco, que é hoje um recurso quase corriqueiro para os especialistas e se tornou indispensável na medicina moderna. Seu advento e constante aperfeiçoamento propiciaram um grande avanço no diagnóstico e tratamento de doenças cardíacas e melhoraram muito o prognóstico das afecções coronarianas.

A protoideia do cateterismo surgiu em 1929, com um autoexperimento realizado por Werner Forssmann, um jovem médico, formado naquele mesmo ano na Universidade de Berlim. Ele estava convicto de que era possível introduzir uma cânula em uma veia e levá-la até dentro do coração. Imaginava com isso que seria possível ministrar medicamentos diretamente, fazer melhores diagnósticos das doenças cardíacas e estudos hemodinâmicos mais precisos. Nessa época, em que também a eletrocardiografia era incipiente e complexa, o diagnóstico das alterações cardiológicas com frequência era impreciso e se baseava quase que somente no exame clínico.

Werner Forssmann expôs sua teoria ao professor Richard Schneider, que chefiava o hospital em Eberswalde, onde trabalhava. Schneider não autorizou o procedimento nem no próprio Forssmann nem em um paciente terminal, alternativa proposta por Forssmann. O jovem e intrépido médico de 25 anos de idade, que já havia testado a técnica em cães, sem danos aparentes aos animais, resolveu, por conta própria, introduzir um cateter ureteral em sua própria veia antecubital esquerda.

Para isso contou com a ajuda da enfermeira Gerda Ditzen, responsável pela sala cirúrgica, a quem convencera a participar da arriscada e clandestina intervenção. Pelo combinado, o cateter seria inserido no braço até o coração da enfermeira, que deixara preparado todo o material. Forssmann amarrou a enfermeira na maca e então realizou o procedimento em si próprio. Gerda ficou muito contrariada por ter sido ludibriada, mas continuou ajudando. Dirigiram-se então à sala de radiologia, onde, guiado pela fluoroscopia, o médico conduziu o cateter até o coração.

Radiografia original de 1929, mostrando o cateter no coração de Forssmann.
fonte Wikimedia

No livro Experiments on Myself. Memoirs of a Surgeon in Germany, Forssmann relatou assim a experiência do auto cateterismo:

“Como a punção venosa com agulha grossa parecia tecnicamente muito complicada, fiz uma secção venosa após anestesia local no cotovelo esquerdo e introduzi o cateter sem resistência em toda a sua extensão, 65 cm. Essa distância parecia corresponder ao caminho do cotovelo esquerdo até o coração. Durante a introdução do cateter, tive a sensação de um calor suave apenas durante o deslizamento ao longo da parede da veia, semelhante à sensação durante a injeção intravenosa de cloreto de cálcio. Pelo movimento intermitente, o cateter batia contra a parede superior e posterior da veia da clavícula, notei um calor especialmente intenso batendo atrás da clavícula sob a inserção dos músculos de rotação da cabeça; ao mesmo tempo, provavelmente por irritação dos ramos vagais, havia uma tosse suave. A posição do cateter foi comprovada por raio-X, e de fato observei a ponta do cateter em um espelho colocado em frente à tela iluminada por uma enfermeira”.

No mesmo livro, ele conta que a notícia se espalhou rapidamente causando alvoroço no hospital e os médicos quiseram arrancar o cateter do seu braço, temendo pela sua vida. O chefe Schneider, que nada autorizara, ficou contrariado com a desobediência e com os riscos a que o aventureiro Werner se expôs, mas a radiografia com o cateter dentro do coração convenceu-o da utilidade do procedimento. Posteriormente concordou com a utilização do cateterismo para ministrar medicamento diretamente no coração de um paciente com quadro muito grave de pericardite. O jovem médico continuou pesquisando as possibilidades da sua técnica, injetando contraste em cães e novamente em si mesmo, mostrando a viabilidade de sua utilização.

Werner Forssmann (1904-1979)
fonte Wikimedia

Forssmann publicou nesse mesmo ano de 1929 o artigo “Die Sondierung des rechten Herzens”, na revista Klinische Wochenschrift, com os detalhes do seu auto cateterismo e que se tornou o trabalho pioneiro fundamental. Apesar de ter sido bastante criticado na época, o auto experimento foi o ponto de partida para o desenvolvimento do cateterismo cardíaco, hoje um procedimento indispensável no diagnóstico e tratamento de numerosas condições cardiológicas. O grande reconhecimento veio em 1956, quando Forssmann recebeu o Prêmio Nobel de Medicina, juntamente com André F. Cournand e Dickinson W. Richards, “pelas suas descobertas em relação ao cateterismo cardíaco e de alterações patológicas do sistema circulatório”.

Werner Otto Theodor Forßmann, nascido em Berlim em 28/08/1904, morreu em Schopfheim, também na Alemanha em 01/06/1979, por um infarto do miocárdio.

Referências

  1. Giffoni, RT e Morais, R. Breve história da eletrocardiografia. Revista médica de Minas Gerais. 20 (2), 2010, pp. 263-270.
  2. Schott, M e Khan, Z. Werner Forssmann, the Man Behind the Self-experiment, and the Nobel Laureate: A Historical Note. Arch Neurosci. 2021 July; 8(3). 2021.
  3. Gottschall, C A M. 1929-2009: 80 Anos de cateterismo cardíaco – uma história dentro da história. Rev Bras Cardiol. invasiva. 17 (2), 2009.
  4. Altmann, L K. Who Goes First?: The Story of Self-Experimentation in Medicine. Los Angeles : University if California Press, 1998.
  5. Forssmann-Falk, R. Werner Forssmann: A Pioneer of Cardiology. The American Journal of Cardiology. 79, 1997, pp. 651-660.
  6. Levin, S.M. The first cardiac catheter. Journal of Vascular Surgery. 2014, Vol. 9, 6, pp. 1744- 1746.
  7. West, JB. The beginnings of cardiac catheterization and the resulting impact on pulmonary medicine. Am J Physiol Lung Cell Mol Physiol 313: L651–L658, 2017.
  8. Nossaman, B D, et al. History of Right Heart Catheterization: 100 Years of Experimentation and Methodology Development. Cardiol Rev. 2010, Vol. 18, 2, pp. 94-101.

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

Este post tem 14 comentários

  1. Sonia Mara

    Texto muito bom . Você é um ótimo historiador.

  2. Francisco Carlos Ribeiro Pintão

    Neto, estava com saudade dos seus seus posts. Na Medicina e na evolução do mundo, se não fossem esses “malucos”, as descobertas seriam muito mais lentas. Dr Werner foi um alemão ousado e desobediente, cuja descoberta beneficiou e beneficiará milhões de pessoas. Palmas eternas a ele!

  3. Anônimo

    Ótimo!

  4. Pedro Alfredo Navarro Góes

    Olá Neto. Obrigado por mais uma história da medicina, super interessante, que eu não fazia a menor ideia e que nos ajuda a compreender a evolução de métodos diagnósticos tão fundamentais como esse. E isso em 1929. Parabéns e um abraço.

  5. CARLOS ALBERTO FARIAS

    Notável pesquisa da história da medicina feita por um brilhante colega. Obrigado por enviar-me tão interessante relato do heroismo desse cientista.
    Abraço

  6. Anônimo

    Muito bom, excelente, Neto!

  7. Ângela de oliveira

    Parabéns neto,excelente matéria

  8. Paulo

    Fantástico, principalmente para quem já fez. Neto,?feliz em ver você em ação.

  9. Rui Costa

    Parabéns, texto leve, conteúdo histórico de tenacidade de juventude.

  10. Geraldo Luiz De Oliveira

    Muito interessante conhecermos através de sua dedicação à história da medicina, como os procedimentos foram desenvolvidos trazendo benefícios incalculáveis à semiologia. Parabéns.

  11. lazaro andrade

    Neto, excelente documentário sobre o primeiro cateterismo cardíaco.
    Relato bastante envolvente e muito interessante. Revela o lado humanitário e heróico do médico alemão Werner Forssmann.
    A sua linguagem clara, leve e enriquecedora faz de você um brilhante médico historiador.
    Gratidão.🌹

  12. Luis Alfredo

    Neto, excelente artigo. Pena que o autor não se autobeneficiou a contento de sua própria descoberta.
    Um abraço

  13. Anônimo

    Gostei muito da curiosidade e da ousadia do Dr. Werner. Como cardiologista, não sabia da história. E ele, que ironia, foi morrer de infarto do miocárdio. Parabéns pela escrita agradável e concisa! Abraços

  14. Antônio Alves de Souza

    Maravilha de história Neto. Parabéns pois você, além de ser um ótimo médico Barra 70 é um excelente escritor Barra 2022.

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