Tudo pela ciência? A febre amarela e o insólito experimento de Emilio Ribas e Adolpho Lutz

Hospital de Isolamento de São Paulo (hoje Hospital Emílio Ribas)
Hospital de Isolamento de São Paulo
(hoje Hospital Emílio Ribas)

Aprendendo a lutar contra a febre amarela 

Desde a década de 1890, a partir de Santos e acompanhando as linhas ferroviárias, a febre amarela havia se espalhado por cidades do oeste paulista, como Campinas, Jaú, Limeira, Sorocaba e São Simão, que vinham apresentando vários surtos da doença, e demandavam ações profiláticas e sanitárias urgentes. Os principais órgãos que cuidavam da saúde pública do estado eram o Hospital de Isolamento que era dirigido por Emílio Ribas e o Instituto Bacteriológico, cujo diretor era Adolpho Lutz. Essas instituições, juntamente com a do Butantã, então conduzido por Vital Brasil, eram a representação da modernidade científica em São Paulo naquele tempo.

O cubano Carlos Finlay já havia apontado, em 1881 o papel do mosquito Stegomyia fasciata (hoje denominado Aedes aegypti) na febre amarela. Mais tarde, em 1900 uma missão americana em Cuba, chefiada por Walter Reed comprovou experimentalmente que aqueles insetos eram efetivamente os vetores que, por meio da picada, transmitiam o que chamavam de “vírus filtrável” que causava o mal amarílico. Emilio Ribas e Adolpho Lutz estavam muito bem informados sobre os trabalhos de Finlay e Reed e plenamente convencidos da validade da então chamada teoria havanesa, tanto que Ribas publicou um livreto em 1901 com o título: O mosquito como agente da propagação da febre amarela, contendo textos de Lutz e de médicos do serviço sanitário, no qual era exposto e comentado os trabalhos de Havana e mostrava o estado da arte naquele momento sobre o assunto.

Emilio Ribas
Emilio Ribas
1862-1925

Emílio Ribas já havia iniciado em 1902 uma grande ação visando a eliminação do Stegomyia fasciata em São Simão, então importante centro de desenvolvimento do oeste paulista que havia sido castigada por três grandes epidemias de febre amarela: em 1896, 1898 e 1902, que provocara grande número de óbitos e o êxodo de boa parte da sua população por conta da doença. A febre amarela foi erradicada de São Simão e esse talvez tenha sido o primeiro grande trabalho de saneamento com foco no mosquito no combate à febre amarela.

Na época, entretanto, grande parte dos médicos brasileiros acreditava que a doença era contagiosa e sua matéria mórbida seria transmitida por objetos, por roupas, por secreções dos amarelentos e por um conjunto de fatores como clima, as emanações ambientais pútridas,  circulação do ar. Outros defendiam a transmissão pela água, ou por bactérias, como o bacilo icteroide, que o italiano Sanarelli havia descoberto e anunciado em 1897, com grande repercussão, como sendo o microorganismo que causava a febre amarela. E havia os que acreditavam que o pequeno inseto era o grande disseminador.

Adolpho Lutz
Adolpho Lutz
1855-1940

Para vencer a resistência dos médicos e da população quanto ao papel do mosquito, Ribas e Lutz realizaram o experimento fundamental para provar a teoria havanesa. O desenho do ensaio era parecido com o que Reed havia desenvolvido em Cuba e previa, numa primeira etapa, que alguns voluntários seriam picados por insetos contaminados para verificar se haveria a transmissão da moléstia e numa segunda fase, as pessoas seriam submetidas a contato com fômites e secreções procedentes de pessoas com febre amarela, em ambiente isolado do mosquito, para verificar a contagiosidade por essa via. As duas etapas foram realizadas no Hospital do Isolamento. As atas dessas experiências foram assinadas por Lutz e Ribas, por Carlos Meyer, do Instituto Bacteriológico, por uma comissão de clínicos e por Luiz Pereira Barreto, médico e político de prestígio e que se tornou nome de cidade do interior paulista.

O experimento

A primeira etapa começou a ser realizada em 15/12/1902 quando dois voluntários, Oscar Marques Moreira e Domingos Pereira Vaz, após assinarem um documento declarando que estavam se submetendo ao experimento de livre vontade e assumindo total responsabilidade pelo que viesse a acontecer, foram submetidos a picadas de estegomias que haviam sido infectados com casos leves de febre amarela, na expectativa de que a doença eventualmente produzida não fosse grave. Os próprios Emílio Ribas e Adolpho Lutz também se deixaram picar pelos mosquitos. No dia 18/12/1902, dia do 47º aniversário de Lutz, que novamente se deixou picar, o mesmo acontecendo com Ribas e os dois voluntários. Outras sessões foram realizadas em 22/12 e 12/01/1903. Nenhum dos quatro sujeitos do ensaio havia ficado doente até então. Na quinta sessão, realizada em 20 de janeiro, mais dois novos voluntários (Januário Fiori e André Ramos) foram submetidos às picadas dos Stegomyia fasciata, que dessa vez haviam sido infectados com doentes de febre amarela da cidade de São Simão. O resultado apresentado foi de que Vaz, Fiori e Ramos ficaram doentes, Lutz, Ribas e Moreira nada sofreram.

A segunda fase do experimento teve início no dia 20 de abril de 1903 e foram realizadas 11 sessões em que outros três voluntários, os imigrantes italianos Antonio Malagutti, Ângelo Paroletti e Giovanni Siniscalchi foram mantidos reclusos no Hospital de Isolamento, tendo que dormir em um aposento livre de insetos, com uma estufa para manter o ambiente aquecido. As roupas de cama e as que vestiam para dormir estavam sujas com sangue e vômitos de doentes de febre amarela. Várias outras peças de roupas igualmente poluídas eram espalhadas pelo chão. A partir da quarta sessão também tiveram que usar fronhas manchadas com vômitos nos travesseiros.  Outra providência adotada, a partir da oitava sessão, foi despejar nas roupas contaminadas fezes, urina e vômitos de doentes amarelentos de outros locais. As roupas tinham que ser sacudidas vigorosamente.

No relatório sobre o experimento, assinado por Pereira Barreto, constava: “era tal a impregnação do ar que sentiamo-nos todos suffocados, sendo particularmente intensa e desagradável a sensação de môfo archi-concentrada que experimentávamos na garganta (…). Não obstante os três indivíduos cheios de humour encontravam n’esse quadro repellente motivo amplo para ditos jocosos e reconfortantes”. Nenhum dos pobres italianos que se submeteram a esse martírio ficou doente. Ainda foram mantidos por mais 10 dias no Hospital de Isolamento em observação, quando tiveram alta e se mostravam “radiantes de alegria e proclamando o excelente passadio que lhes proporcionou o Hospital de isolamento durante o período de reclusão”, conforme o texto do relatório.

As conclusões da comissão encarregada de acompanhar e se posicionar sobre o experimento foram de que eram infundadas as teorias de contágio pelas roupas e secreções dos doentes e foram taxativas no sentido de responsabilizar o Stegomia fasciata, como o agente transmissor da febre amarela.

Dois meses depois, no 5º Congresso Brasileiro de Medicina e Cirurgia, realizado no Rio de Janeiro de 16/06 a 02/07/1903, foi lida a memória do experimento elaborada por Emilio Ribas e o tema foi intensamente debatido entre os congressistas. Depois de demoradas sessões de votação, o Congresso decidiu separar em duas partes as conclusões do experimentador: na primeira parte, por unanimidade foi votado o texto: “A teoria da transmissão da febre amarella pelo Stegomyia fasciata é fundada em observações e experiências de accôrdo com os methodos scientíficos”.  Já a segunda parte teve alguns votos contrários, mas a grande maioria aprovou a conclusão que: “Nenhum outro modo de transmissão está demonstrado rigorosamente”.  

Um experimento que deliberadamente expõe os sujeitos ao risco de adquirir uma doença potencialmente fatal, que expõe os próprios cientistas aos mesmos riscos, que submete os voluntários a situações repugnantes, evidentemente tem problemas éticos importantes, se visto com os olhos de hoje. Na época, entretanto, os procedimentos foram aceitos naturalmente e considerados como sendo de claro valor científico, executado dentro dos preceitos da ciência. Esse conhecimento estabelecido passaria a ser a base das ações profiláticas a partir de então e se consolidaria definitivamente com as ações desenvolvidas no Rio de Janeiro a partir de 1903 pelo jovem e arrojado Oswaldo Cruz, que também era defensor da teoria da transmissão do mal amarílico pelo Stegomyia fasciata, que na década de 1920 passaria a ser denominado por Aedes aegypti.

Referências

1. Benchimol; Benchimol, J.L; Sá, M.R. Adolpho Lutz. Febre amarela, Malária e Protozoologia. Rio de Janeiro : Editora Fiocruz, 2005.
2. Pereira Barreto, L, Rodrigues, A.G.S e Barros, A. Experiencias realisadas no Hospital de Isolamento de S. Paulo para verificação do contagio da febre amarella por intermedio de roupas ou dejeções dos doentes dessa molestia. O Brazil-Medico. Vol. 31, 15 de agosto de 1903.
3. Prophilaxia da febre amarella- 5º Congresso Brazileiro de Medicina e Cirurgia. O Brazil-Medico. 43, Vol. 15/11/1903.
4. Figueiredo, L.T.M. A febre amarela na região de Ribeirão Preto durante a virada do século XIX: importância científica e repercussões econômicas. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. 29 (1):63-76, 1996.
5. Teixeira, L.A. Da transmissão hídrica a culicidiana: a febre amarela na sociedade de medicina e cirurgia de São Paulo. Revista Brasileira de História. 2001, Vol. 21, 41.
6. Monti, C.G. As implicações das epidemias de febre amarela em São Simão (1896 – 1902). Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011.
7. Almeida, M. Combates sanitários e embates científicos: Emílio Ribas e a febre amarela em São Paulo. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. VI(3): 577-607, nov. 1999-fev. 2000.

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

Este post tem 4 comentários

  1. SONIA PIRES

    Execelente texto, Dr. Neto. A medicina brasileira sempre foi avançada na prevenção de doenças contagiosas. Infelizmente os politicos de hoje não colaboram com a classe médica para conter a pandemia do coronavirus.

  2. Luis

    Neto, como sempre contribuindo para nosso melhor conhecimento com artigos interessantes e pitorescos.

  3. Unknown

    Grande Neto. Nosso historiador juramentado.

  4. Unknown

    Mais um texto com preciosas informações sobre história da medicina.

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