Tristes Tigres

Até meados do século XIX, o saneamento básico no Brasil era muito precário, especialmente em relação ao destino dos esgotos. Nas grandes cidades, a situação era muito complicada.  As “aguas servidas” como se dizia então, eram muitas vezes jogadas diretamente nas ruas, ou depositadas em tonéis e despejadas em um local ermo ou nos rios e no mar.

Tigres despejando os excrementos no mar. por Henrique Fleiuss

Esses tonéis, geralmente barris de madeira, eram carregados das residências para o mar por escravos, que eram conhecidos como “tigres”. A denominação viria do fato de que o conteúdo dos recipientes muitas vezes vazava e manchava a pele dos negros subjugados, formando listras nos seus corpos, que lembravam as do felino. O barril contendo os dejetos também era chamado de tigre.  

No Rio de Janeiro, então a maior cidade brasileira, o quadro era muito grave e o mau cheiro das ruas era insuportável. O Rio tinha fama de cidade insalubre. Uma das poucas medidas adotadas para minimizar o problema foi exigir que os tigres transitassem apenas à noite, depois das 21 horas. A mais importante rua do Rio de Janeiro na época, a Rua do Ouvidor era a via preferencial utilizada pelos escravos para o trajeto até o mar.

Nos jornais da época eram frequentes as reclamações de cidadãos indignados com os transtornos provocados por essa atividade, como o terrível mau cheiro e os acidentes que faziam com que os barris despencassem espalhando o seu desagradável conteúdo no chão e às vezes em incautos transeuntes. A indignação se estendia também aos infelizes tigres cativos.

É ilustrativa a carta de um leitor do jornal O Despertador , na edição de 12/09/1838:

 “ (…)depois das 8 horas, sahirão dois escravos meus para a praia e sendo um deles preso pelos officiaes, ou cousa que o valha, do Sr. Fiscal, o conduzirão à cadêa, donde o fui tirar no dia seguinte, pagando em casa do Sr. Juiz de paz 2,600 e na cadêa 600 rs. Ora, se os despejos são depois das 9 horas, então com justiça o meu escravo foi preso, e eu obrigado a pagar a multa de 3,200, porém é escandaloso que o Sr. Fiscal e os seus immediatos só queirão ser exactos no cumprimento de suas obrigações de noite e de dia sejam cegos, mudos e surdos. Toda a cidade baixa está de continuo incommodada e enfadada de ver os tigres passarem a toda hora do dia pelas ruas do Ouvidor, Direita e outras em direção à praia.”

Reparem que o negro que cumpria ordens foi punido com a prisão e só saiu de lá no dia seguinte, quando o seu senhor pagou a multa.

Tigres, na charge de Henrique Fleiuss

Outro leitor reclamava no mesmo jornal, em 1840:

“Debalde pretendem famílias honestas dirigirem-se ao Passeio Público para respirarem hum ar puro e saudável, pois que alli só se respirão miasmas, em virtude dos tigres que se arrojão nas praias visinhas; bem como homens de todas as cores, sem pudor ou respeito às santas posturas da câmara municipal apresentao-se nús a se banharem em todas as horas do dia!”

No Diario do Rio de Janeiro, em 1836 o redator escrevia:

“Uma coisa que tambem temos reparado, e é a franqueza com que os tigres andao impunemente de dia por essas ruas. Não há muito que vinha um preto com um dos tais tigres, e o deixou cair, talvez muito de propósito, e não só salpicou a dois homens que então passavão, como ficou n´aquelle lugar um cheiro insuportavel.”

As medidas tomadas para solução do problema do mau cheiro provocado pelos tigres eram paliativas, como nos conta o escritor Joaquim Manoel de Macedo (autor de A Moreninha) no livro Memórias da Rua do Ouvidor:

primeiro houve horas marcadas para o saimento e despejo dos tigres e praias determinadas exclusivamente para o despejo deles. Depois usaram para os despejos barris que pelo menos se proclamavam hermeticamente fechados e depois carroças conduzindo em grandes caixas tampadas aqueles mesmos barris”.

Joaquim Manoel de Macedo, que era médico, também deixou relatado em tom de blague um dos  incidentes que ele presenciou:

“O inglês de chapéu de patente, casaca preta e gravata branca subia pela Rua do Ouvidor, quando encontrou um negro que descia, levando à cabeça um tigre para despejá-lo no mar.

O pobre africano ainda a tempo recuou um passo, mas o inglês que não sabia recuar avançou outro; o condutor do tigre encostou-se à parede que lhe ficava à mão direita, e o inglês supondo-se desconsiderado por um negro que lhe dava passo à esquerda pronunciou a ameaçadora palavra goodemi, e sem mais tir-te nem guar-te honrou com um soco britânico a face do africano, que perdendo o equilíbrio pelo ataque e pela dor, deixou cair o tigre para diante e naturalmente de boca para baixo.

Ah! Que não sei de nojo como o conte!

O Tigre ou o barril abismou em seu bojo o chapéu e a cabeça e inundou com o seu conteúdo a casaca preta, o colete e as calças do inglês.

O negro fugiu acelerado, e a vítima de sua própria imprudência, conseguindo livrar-se do barril, que o encapelara, lançou-se a correr atrás do africano, sacudindo o chapéu em estado indizível, e bradando furioso:

— Pegue ladron! Pegue ladron!…

Mas qual – pega ladron! -: todos se arredavam de inocente e malcheiroso negro que fugia, e ainda mais o inglês, tornado tigre pela inundação que recebera.”

No Rio de Janeiro, o degradante trabalho dos tigres só começou a desaparecer na década de 1860 quando começaram a ser instalados sistemas para recolhimento de esgotos na Corte.

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

Este post tem 9 comentários

  1. Francisco Carlos Ribeiro Pintão

    Sensacional os relatos. Somos privilegiados em ter nascido num momento do mundo que tudo isso (a coleta de resíduos) já é feita de maneira rotineira e a maior parte dos cidadãos se beneficia disso. É impensável morar num lugar assim. Valeu!

  2. OROZIMBO ANTONIO DE SOUZA LEITE

    Relato precioso de um tempo que ainda deixa rastros. Parabéns amigo. Orozimbo

  3. CARLOS EDUARDO JANSEN MELO

    Como imaginar isso, meu amigo Neto? Surreal, mas real. Seu belo relato até melhora o aroma dos fatos. Parabéns!

  4. SONIA PIRES

    Oi Neto! Já conhecia a história dos tigres! Mas os detalhes é que dão o sabor especial. Felizmente não vivenciamos isso, mas tais condições de insalubridade ainda assola em muitas regiões do nosso país! Um abraço

  5. Anônimo

    Dr. Neto, admiro o seu cuidado em compartilhar fatos da nossa história. É bom saber que já avançamos nas questões de saneamento.

  6. Anônimo

    Obrigada Neto, fiquei impressionada com a ortografia da época, mas é muito interessante essa informação, parabéns pela sua curiosidade de saber sempre mais 👏👏👏👏👏👏👏👏

  7. Anônimo

    Parabéns Neto . Gosto muito de ler os seus textos

  8. Anônimo

    Parabéns,Neto.
    Continue a nos brindar e instruir, aumentando a nossa cultura de maneira tão clara.

  9. Elizeu

    Beleza Neto. Ótimo texto com muitas informações.

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