Rompendo paradigmas: As mulheres desbravadoras na medicina brasileira

A sociedade patriarcal do século XIX reservava à mulher um papel secundário. As famílias abastadas procuravam dar a melhor educação possível para os meninos, mas para as meninas, bastava a educação primária, com forte conteúdo moral e religioso e mesmo doutrinário, para prepará-las para o seu papel principal que era o de ser mãe e esposa, saber cuidar do lar, do marido e dos filhos. A mulher era chamada de “rainha do lar”, o “belo sexo”, o “sexo frágil”, o “esteio do marido”. A educação superior era simplesmente vedada às mulheres. Mulheres médicas, nem pensar.

Retrato de época de Maria Augusta Generoso Estrela, em preto e branco.
Maria Augusta Generoso Estrela

A exclusividade masculina na medicina foi rompida por Maria Augusta Generoso Estrela que, pela impossibilidade de estudar no Brasil, foi admitida na New York Medical College and Hospital for Women, com menos de 16 anos de idade. Maria Augusta concluiu o curso em 1879, mas por não ter idade suficiente, foi diplomada apenas em 1881. Após retornar ao Brasil, foi submetida a exames de suficiência para validação do seu diploma. A saga e o pioneirismo de Maria Augusta Generoso Estrela estão contadas neste blog, neste link.

O sucesso de Maria Augusta e a repercussão do seu feito certamente ajudaram a mudar as coisas no Brasil. Assim, foi assinado o decreto 7247 de 19/04/1879, conhecido como Reforma Leôncio de Carvalho, que facultava a inscrição nas faculdades de medicina “aos indivíduos do sexo feminino, para os quaes haverá nas aulas logares separados”. Logo em 1881, a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro aceitou a matrícula de duas alunas: Ambrosina Magalhães e Augusta Castelões Fernandes, que não terminaram os estudos. Nos anos seguintes, novas alunas foram matriculadas: Josefa A. F. Mercedes de Oliveira em 1882, Elisa Borges Ribeiro, em 1883 e; em 1884, ingressaram Rita Lobato Velho Lopes, Ermelinda Lopes de Vasconcelos, Antonieta Dias e Maria Amélia Cavalcanti de Albuquerque.

O pioneirismo causou vários dissabores às jovens estudantes. Embora conste que tenham sido bem recebidas pelos colegas e professores, enfrentaram certamente muita resistência e oposição na sociedade. Acreditava-se que a mulher era frágil, muito delicada e sensível, pouco habilitada para trabalhos intelectuais e até menos inteligente que o homem. E havia o aspecto moral. Como permitir à mulher a visão da nudez masculina, mesmo que parcial e mesmo nas peças anatômicas? Foram contestadas em artigos na imprensa, em livros, ridicularizadas em pelo menos uma peça teatral: “As Doutoras”, de Joaquim José de França Junior, encenada por meses no Rio de Janeiro. Um certo Leandro Malthus, num livro de 1883 sobre a Faculdade de Medicina escreveu que as estudantes eram “desertoras do lar”, e por isso antevia a dissolvência da família.

Retrato de época de Rita Lobato Velho Lopes, em preto e branco.
Rita Lobato Velho Lopes

A primeira das jovens estudantes pioneiras a se formar foi Rita Lobato Velho Lopes, que ingressou em 1884 na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, mas se transferiu no ano seguinte para a Faculdade de Medicina da Bahia, onde concluiu os estudos em 1887. Lá aproveitou a lei que permitia aos alunos adiantar o curso, submetendo-se a exames das disciplinas que ainda seriam cursadas. No ano seguinte, Ermelinda Lopes de Vasconcelos tornou-se a primeira mulher a conseguir o grau de Doutora em Medicina pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.

Retrato de época de Ermelinda Lopes de Vasconcelos, em preto e branco.
Ermelinda Lopes de Vasconcelos

Um fato que ilustra bem o pensamento da época foi que, logo após a formatura de Ermelinda, o escritor Silvio Romero, que se tornaria membro da Academia Brasileira de Letras escreveu um artigo chamado Machona em que dizia: “Fique certa a doutora que os seus pés de Machona não pisarão jamais o meu lar”. Acontece que vários anos mais tarde o escritor mandou chamar a Dra. Ermelinda, então médica conceituada e dedicada à obstetrícia, para assistir sua mulher em trabalho de parto, o que foi feito. O escritor, agradecido e provavelmente esquecido do que escrevera, solicitou que o pagamento fosse feito parceladamente e com desconto. Consta que a Dra. Ermelinda, então, entregou-lhe o recorte do artigo e lhe disse: – “O senhor me pagará caro, e de uma vez!”.

Enfrentando preconceitos, resistências e pressões, essas mulheres decididas, corajosas, e com ideias anacrônicas desbravaram os caminhos que levaram à fundamental participação feminina na medicina. Um grande estudo sobre a demografia médica mostrou que, em 2020, 46,6% dos integrantes da profissão eram do sexo feminino. Desde 2009, as mulheres são maioria entre os novos registros nos conselhos de medicina e, se já não são, em breve as médicas serão maioria também em números absolutos.

Referências:

1. Império do Brasil, Coleção de Leis. Decreto 7247 de 19/04/1879.
2. Lobo, F.B. Rita Lobato: a primeira médica formada no Brasil. Revista de História. Revista de História. 42, 1971, Vol. 86, pp. 483-485.
3. Juliska Rago, E. A ruptura do mundo masculino da medicina: médicas brasileiras no século XIX. Cadernos Pagu (15) .199-225. 2015.
4. Malthus, L. Apontamentos e commentarios sobre a escola de medicina contemporanea do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro : Lombaerts @ C, 1883.
5. Barreto, R. A. D. N., Silva, T. A. S. M. Como se formar médica no século XIX: o caso da pernambucana Maria Amélia Cavalcanti de Albuquerque. Rev. Bras. Hist. Educ., 21, e170. 2021.
6. Trindade, A.P.P e Trindade, D.F. Desafios das primeiras médicas brasileiras. História da Ciência e Ensino. 2011, Vol. 4, pp. 24-37.
7. Rezende, J.M. O machismo na história do ensino médico. À sombra do plátano. Sao Paulo : Unifesp, 2009.
8. Colling, A.M. As primeiras médicas brasileiras: mulheres à frente de seu tempo. Fronteiras: Revista de História. 2011, Vols. 13, núm. 24, pp. 169-183.
9. Schefer, M et al. Demografia Médica no Brasil 2020. São Paulo : FMUSP, CFM, 2020.

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

Este post tem 7 comentários

  1. CARLOS EDUARDO JANSEN MELO

    Belo texto, Neto. Hoje sabemos de sobra que as mulheres são, por exemplo, mais atentas a detalhes, e que detalhes são fundamentais pra diagnóstico, o que é o início de todo procedimento médico.

  2. Simone de Menezes Karam

    Ótima matéria!!!

  3. Ana Tillmann

    Mulheres valorosas e determinadas fizeram a face feminina ser reconhecida na Medicina atual.
    Excelente matéria!

  4. Heloísa S. Amaral

    Gostei muito do texto, excelente.
    Parabéns a todas mulheres!

  5. Anônimo

    Muito bom o texto! Parabéns a todas as mulheres batalhadoras!

  6. Joyce Crispim

    É sempre bom ouvir histórias que inspiram.

  7. Sonia Mara C Geraldes

    Excelente texto. Parabéns!!👏👏👏👏👏
    Parabéns a todas nós mulheres, decididas, corajosas, batalhadoras e amorosas!

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