O documento abaixo foi escrito há dois mil anos. Faz parte da obra “De Medicina” (“Sobre Medicina”) de Aulus Cornelius Celsus. Certamente é o mais antigo documento relacionado à história da odontologia da era cristã.
O texto é uma tradução livre minha de uma versão em inglês, de 1938, do De Medicina. Aqui, Celsus compila o conhecimento da época com relação a extração dentária, tratamento de cáries e traumas odontológicos, detalhando procedimentos cirúrgicos que deviam ser adotados.
(…) Em primeiro lugar, às vezes os dentes ficam frouxos, ou por conta de fraqueza das raízes ou por doenças que secam as gengivas. Em ambos os casos, o cautério deve ser aplicado de modo a tocar levemente as gengivas, sem pressão. As gengivas então cauterizadas são untadas com mel e enxaguadas com vinho de mel. Quando as ulcerações começam a ficar limpas, medicamentos secos que agem como sedativos são polvilhados.
Porém se um dente causa dor e se decide extraí-lo, porque os medicamentos não conseguem aliviar, o dente deve ser raspado em volta, de modo que a gengiva fique separada dele; e então o dente é agitado. E isso deve ser feito até que ele fique bem móvel, porque é muito perigoso extrair um dente que está muito firme, pois às vezes a mandíbula é deslocada. Com os dentes superiores há também grande perigo, pois as têmporas ou os olhos podem sofrer concussão.
Então o dente deve ser extraído, com a mão, se possível, e se falhar, com o fórceps. Se o dente estiver deteriorado, a cavidade deve ser primeiramente preenchida, ou com fibras de algodão ou com chumbo, pois assim o dente não quebrará em pedaços com o fórceps. O fórceps deve ser puxado direto para cima, porque se as raízes estiverem dobradas, o fino osso ao qual o dente está aderido, pode se quebrar em alguma parte. E este procedimento não está livre de perigo, especialmente no caso de dentes curtos, que geralmente têm raízes curtas, pois frequentemente quando o fórceps não pode agarrar o dente ou não o faz adequadamente, ele aperta e quebra o osso dentro da gengiva.
O cautério relatado consistia em uma pequena faca em brasa que era aplicada no local desejado.
O vinho de mel é o hidromel, a mais antiga bebida alcoólica de que se tem registro e resultado da fermentação natural de água e mel.
Prossegue Celsus:
No entanto, se houver um grande fluxo de sangue, é evidente que algo foi quebrado do osso. É necessário, portanto explorar com uma sonda o pedaço de osso que foi separado e extraí-lo com um pequeno fórceps. Se isso não der certo, a gengiva deve ser cortada até que o pequeno pedaço seja encontrado. E se isso for feito de uma só vez, a mandíbula em volta do dente endurece, de modo que o paciente não pode abrir sua boca. Um cataplasma quente feito de farinha e um figo é então colocado até que o pus seja formado lá: então a gengiva deve ser cortada. Um fluxo de pus também indica um fragmento de osso; assim também é correto extrair o fragmento; às vezes quando o osso é lesado, uma fístula é formada e deve ser eliminada.
Um dente duro deve ser raspado na parte que tem a cor preta e coberto com pétalas de rosa amassadas, às quais devem ser adicionadas uma quarta parte de chifre de boi e a mesma quantidade de mirra, e com intervalos frequentes vinho não diluído deve ser mantido na boca e nesse caso a cabeça deve ser enrolada e o paciente deve fazer exercícios de caminhada, massagem na sua cabeça e comer alimentos não muito amargos.
Mas se os dentes ficam frouxos por um golpe ou por outro acidente eles devem ser amarrados por fio de ouro firmemente fixado aos dentes sedativos devem ser mantidos na boca, como vinho no qual casca de romã tenha sido cozida ou no qual chifre de boi tenha sido jogado.
A vida de Aulus Cornelius Celsus não é bem conhecida. Sabe-se que ele nasceu por volta de 25 a.C. durante o reinado de Augusto, numa localidade chamada Galia Narbonensis, que fica no que hoje é o sul da França. Mais tarde viveu em Roma em época não precisada pelos historiadores. (2) (3) Celso é citado algumas vezes nas obras dos enciclopedistas Quintiliano e Plínio, o Velho, que atestam sua atuação em Roma no início do primeiro século da era cristã, possivelmente durante o tempo de Tibério, que reinou entre 14 e 37 d.C. (4)
Existem algumas controvérsias relacionadas à sua biografia. Seu primeiro nome é citado como Aulus por alguns e por Aurelius por outros. Outra polêmica é com relação à profissão. Não existe a certeza de que Celsus fosse realmente médico, na verdade existe grande probabilidade de que ele fosse um enciclopedista e não um médico praticante. Apesar de na sua obra Celso manifestar por diversas vezes sua experiência pessoal, não existe documentação que ateste sua atuação como medicus.(3)
A fama e prestígio de Celsus estão relacionados à sua obra De Medicina, escrita em latim elegante e claro, que lhe valeu o apelido de “Cícero da Medicina”. (2) (4) Essa obra fazia parte de uma grande enciclopédia escrita por ele, chamada Artes ou Artibus, que continha também livros sobre agricultura, retórica, jurisprudência, artes militares, mas apenas o De Medicina acabou sendo preservado.
Referências
1. Celsus, A. C. – De Medicina – Tradução inglesa de 1938 do latim. Disponível aqui.
2. Encyclopedia of World Biography. (s.d.). Acesso em 13 de 03 de 2010, disponível aqui.
3. Puigbó, J. J. (2002). Aulus Cornelius Celsus (25aC-50dC) – De Medicina. Gaceta Méd Caracas, 110.
4. Sousa, M. A. (2005). A arte médica em Roma antiga nos De Medicina de Celso. Ágora. Estudos Clássicos em Debate, pp. 81-104.