270116
No estudo da história da medicina no Brasil, é frequente o encontro de referências sobre uma doença muito encontradiça no país até o século XIX, conhecida como maculo e também por diversos outros nomes como corrupção, achaque do bicho, mal do bicho, mal do sesso, mal del culo. A moléstia se caracterizava por graves lesões na região do ânus e do reto e acometia principalmente os escravos, mas foram relatados vários casos entre os indígenas e também nos europeus. Os primeiros casos registrados datam do século XVII.
Guilherme Piso um erudito médico holandês, que esteve no Brasil com Maurício de Nassau e autor do primeiro livro sobre medicina relacionado ao Brasil, o Historia Naturalis Brasiliae, publicado em 1648, já se refere ao maculo no capítulo De ulcere et inflamatione anni, em que apresenta a doença como sendo muito antiga.
Miguel Dias Pimenta, um viajante, não médico, publicou em 1707 o livro Noticias do que he o achaque do bicho em que relata aspectos epidemiológicos e clínicos do maculo.
Vários outros escritores e médicos importantes escreveram sobre a estranha moléstia: Carl Friedrich Philipp von Martius, que veio ao Brasil com a princesa Leopoldina relaciona a “doença do bicho” com o clima úmido e quente, José Francisco Xavier Sigaud, médico francês que se estabeleceu no Brasil e se tornou influente na Academia Imperial de Medicina no livro du climat et des maladies du Brésil diz que o maculo aparecia após febres graves ou escorbuto.
As manifestações clínicas da doença eram um processo inflamatório do reto, que provocava relaxamento do esfíncter anal, uma secreção extremamente fétida, prolapso retal e sintomas gerais como febre, torpor e frequentemente evoluía para o óbito. Há vários relatos da observação de miíase (infestação de larvas de insetos) da região anal nesses doentes. O relaxamento anal era a regra e de graus variados, com ulcerações e segundo Sigaud ao tato dava a impressão de pele de lixa em torno do ânus. A gangrena dos tecidos locais era também encontrada. Piso disse também que as lesões
“chegam a tão alto grau de podridão, acompanhados de dor atroz e inflamação (…) com tão feio aspecto que o ânus, largamente aberto, à moda de cloaca, mostra uma cor lívida e plúmbea”.
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Sir Ronald Martin médico inglês do século XIX escreveu:
“em consequência da frouxidão muscular, tão comum em pessoas que por muito tempo habitaram climas tropicais e nos inválidos dos trópicos, os tumores hemorroidais, a frouxidão e a descida da mucosa do reto são de fácil ocorrência; e quando a este estado do sistema muscular ajuntarmos os resultados gerais e locais da diarreia ou disenterias crônicas, não admira que o esfíncter e todo o períneo se tornem extraordinariamente flácidos. (…) a descida da membrana mucosa ou de tumores hemorroidais, de dentro ou de fora do intestino, e o tegumento hipertrofiado externo ao esfíncter, conserva este músculo em estado de permanente frouxidão, ou meio aberto, diminuindo sua tonicidade.”
Embora chamado de mal do bicho, achaque do bicho, a miíase não era a causa do maculo e nem uma complicação muito frequente. Certamente, quando ocorria, provocava um aspecto clínico assustador.
Entre as causas apontadas para a ocorrência do maculo o clima quente e úmido estava sempre destacado, em acordo com a eurocêntrica visão de inferioridade dos trópicos, peculiar da época. Ela foi encontrada em todos os lugares onde chegavam escravos novos trazidos da África.
O tratamento, empírico, era baseado em medidas locais, utilizando-se diversas substâncias como cânfora, limão, sal. Um dos tratamentos mais utilizados, que o nosso olhar de hoje tende a ver como tão terrível quanto a doença, era o sacatrapoque consistia na introdução de panos úmidos contendo pólvora, pimenta, aguardente e fumo por via retal, na tentativa de cura dos infelizes doentes.
Acreditava-se que o nome maculo provinha de uma contração do termo espanhol “mal del culo”, mas é provável que ele seja proveniente do termo makulu da língua africana quimbundo, conforme ensina Joffre Rezende, professor emérito da Universidade de Goiânia.
A partir de meados do século XIX não se teve mais notícia da ocorrência do maculo no Brasil.
Referências
Santos Filho, Lycurgo- História geral da medicina brasileira- 1991 São Paulo- Hucitec
Lima, J.F.S- Gazeta Médica da Bahia- ano XXII março de 1891 nº9
Wissenbach, Maria Cristina Cortez – Cirurgiões do Atlântico Sul conhecimento médico e terapêutica nos circuitos do tráfico e da escravidão (séculos XVII- XIX) Anais do XVII Encontro Regional de História- 2004
Em África não desapareceu
Olá Laura. obrigado por ter lido. As fontes consultadas mostram que o tratamento do maculo era feito principalmente com o uso de substâncias tópicas, que tinham a finalidade de "cauterizar" as lesões. Chama a atenção o uso do "sacatrapo", descrito no texto.
Chemo-me Laura Bravo Tradicionalmente como se deve tratar?
desapareceu no brasil, aqui em Angola a muito maculo
Jeremias, a causa permanece obscura. A doença desapareceu há mais de 100 anos e não foram realizados estudos posteriores. Um autor chamou-a de retite gangrenosa epidêmica, mas não era epidêmica, e sim endêmica, e a gangrena não era a regra. A característica que mais chama a atenção nas descrições é a frouxidão e dilatação anal, que "admitia um punho" acompanhada por uma secreção extremamente fétida, pútrida.
Neto, não se sabe a causa da doença (maculo)?
Jeremias
Ae! Muito bom conhecer a história da medicina, nesse caso, no Brasil. Aos poucos, estamos mais letrados, sorvendo desse xarope. Abraço.
Branco
Neto, faça uma coletânea do que tem escrito sobre aspectos históricos da Medicina e do que pretende publicar e já tem seu doutorado….