Pesquisando fontes sobre a história da medicina no Império, deparei-me com o episódio relatado abaixo, que pode parecer-nos incrível e assustador se visto com nossos olhos de hoje, mas que nos dá uma boa ideia do modo de pensar dos médicos daquela época. O caso está relatado no livro Du climat et des Maladies du Brésil, escrito por José Francisco Xavier Sigaud, publicado em 1844 e que foi repercutido por outros autores por longo tempo. Vital Brasil no seu clássico livro A defesa contra o ophidismo, publicado em 1911 transcreve e comenta o texto de Sigaud.
No ano de 1838 residia no Rio de Janeiro Mariano José Machado, de 50 anos de idade. Mariano era um doente de lepra com seis anos de evolução e se tratava no Hospital dos Lázaros no Rio de Janeiro. O quadro clínico da sua doença era descrito assim: “A lepra leontina, chegada a seu segundo período, tinha tornado a superfície do corpo insensível ao tacto; o tecido cutâneo, denso e rugoso, era coberto de tubérculos pouco elevados, sem alteração, a face asquerosa pela deformação dos traços; as extremidades dos dedos haviam já perdido sua forma e a epiderme se destacava facilmente; as unhas se alteravam, e os dedos estavam contraídos.” A sua forma clínica era classificada como “Lepra tuberculosa Leontina de Aliberti”.
Mariano ouvira dizer que o veneno de cobra era capaz de curar a lepra. Angustiado com a doença que continuava a evoluir a despeito dos tratamentos e com o sofrimento físico e moral que ela lhe provocava, tomou a decisão extrema de submeter-se a picada de uma serpente. Procurou então o cirurgião M. Santos, na Rua do Valongo, que possuía uma cascavel, pedindo para que fosse picado. Sigaud diz que Mariano “recebeu prudentes e sábios conselhos de diversos médicos, que entreviam um successo mais que duvidoso no emprego deste perigoso meio”, mas o fato é que ele estava decidido e o cirurgião acabou concordando em fazer a experiência e mais que isso, ela foi levada a termo diante de uma plateia com vários médicos, sendo citados os Drs. Silva Maia, Costa, A. F. Martins, Tavares, Reis etc…
Depois de assinar um termo de responsabilidade e declarar que agia de vontade própria, assumindo as consequências de seu ato, o corajoso Mariano José, conforme relata Sigaud: “(…) submetteu-se á prova de mordedura, apresentando a mão ao reptil, com o maior sangue frio, e conservando toda a presença de espirito” (…) “sua mão direita, introduzida no interior da gaiola, apanhou por duas vezes a cobra. Esta foge a princípio, lambendo depois a mão sem mordel-a: sentindo-se, porém, presa com força, pelo meio do corpo, morde a mão do doente entre a articulação do pequeno dedo e o annular com o metacarpo. A mordedura tem lugar ás 11 horas e 50 minutos da manhã.” No seu livro, Sigaud apresenta um minucioso relato, cronologicamente preciso, da evolução clínica e da agonia do infeliz Mariano, que morreu às 11:30 hs do dia seguinte.
De fato, na época havia a crença popular de que a picada de cobra podia curar a lepra e mesmo no meio médico isso não era uma hipótese absurda. Galeno, no século II, preconizava o uso de carne de serpente no tratamento, “veneno expulsa outro veneno”. Um dos remédios que Pedro Hispano, médico português do século XIII (que se tornou o Papa João XXI) recomendava era colocar uma serpente num tonel de vinho até ficar em putrefação e o leproso devia tomar esse vinho.
No início de 1838, Abreu e Lima havia publicado um extenso artigo na Revista Médica Fluminense, órgão da Academia Imperial de Medicina, exaltando a eficácia do veneno de cobra e relatando várias histórias de cura. É bem possível que essa publicação possa ter influenciado os médicos que concordaram em participar do evento. O Dr. Emilio Santiago da Silva Maia, que era um respeitado médico da corte, lembrava os casos de um doente de lepra de Rio das Velhas em 1835 e outro doente do Maranhão, ambos picados por cascavel e ambos ficaram curados da lepra. Certamente não era por acaso que o Dr. Silva Maia fazia parte dos observadores médicos que acompanharam a experiência. Mesmo com a morte do paciente, ele ainda manteve a confiança na eficácia do veneno da cascavel. Talvez fosse apenas uma questão de dose.
O caso teve repercussão no meio médico por muitos anos, muito mais pelo fracasso da tentativa desesperada do pobre Mariano José de se livrar da então terrível lepra, do que pela participação e consentimento tácito dos médicos que acompanharam o evento. Inimaginável nos dias de hoje, era bastante comum esse tipo de conduta dos cientistas em busca do progresso da ciência e, quem sabe, da glória.
No dia 20 de setembro de 1838, foi publicado um anúncio no Jornal do Commercio, em que a viúva de Mariano agradecia as esmolas recebidas e pedia que as almas sensíveis novamente amparassem e favorecessem “a desvalida viuva de hum homem, cuja coragem contribuio ao menos para que a sciencia conhecesse o que devia esperar ou temer de tão arriscada tentativa.”
Referências
1. Sigaud, J.F.X. Du climat et des maladies du Brésil. Paris : Fortin, 1844.
2. Moraes Junior, João. Tratamento das algias em doentes de lepra. [Online] 1935.
3. Brasil, Vital. A defesa contra o ophidismo. s.l. : Pocai& Weiss, 1911.
4. Bomfim, A.M. Alguns apontamentos acerca das mordeduras das serpentes e das picadas dos insectos venenosos. Gazeta Médica da Bahia. 3, 1869, Vol. 64.
5. Lima, Abreu e. Memoria sobre a elefancia. Revista Médica Fluminense. 1838.
6. Castro, N.M.C. e Berrio, G.B.B. Lepra: enfermedad milenaria y actual. Iatreia. 2011, Vol. 24, 1.
7. Pereira, M.H.R.P. Obras médicas de Pedro Hispano. Coimbra : Editora da Universidade de Coimbra, 1973.
8. Jornal do Commercio, edição de 20/09/1838.
Oi Neto, obrigada por compartilhar conosco mais um excelente texto sobre a história da medicina! A Medicina evoluiu graças ao desejo e procura da cura por algumas pessoas, especialmente médicos, mas acho que no caso de Mariano, os médicos exageraram! Não sei o que esperavam, mas foi mal testado e não encontraram a solução do problema. Foi puro “achismo”. Será que não conheciam a publicação de 1637 , quase 200 anos antes, de Rene Descartes – Discurso do Método, sobre os preceitos lógicos que definiam a base da pesquisa científica tendo como primeira lei – nunca aceitar como verdadeira uma evidencia como tal, afim de evitar precipitação e prevenção? Pra mim, foi um suicídio assistido por pessoas que deveriam ter sido mais cuidadosos na solução do problema.Infelizmente, como médica auditora por mais de 20 anos, fui obrigada a expor alguns colegas que queriam fazer alguns tratamentos nos seu pacientes,sem evidencias cientificas. Hoje em dia, existe a panacéia do uso da albumina para tratar várias patologias, antibióticos sem evidência de infecção, exagero na solicitação de exames complementares entre outros. O obscurantismo ainda persiste na nossa categoria (“ouviu falar” que tal remédio é bom para tal coisa)! A história recente da epidemia por Covid 19, quanto palpites?! Cloroquina, invermectina e outros sem evidência cientifica! Vacina a todo custo, atropelando a metodologia científica!!! Retrocesso sem dúvida! È melhor ser picado pela cascavel! kkk Abraços Neto.