Disparada

Meu professor de português no primeiro ano do curso científico em Mirassol era pouco ortodoxo. Preocupava-se quase nada com gramáticas, análises sintáticas, análises morfológicas, ortografias e vivia estimulando a reflexão. No começo do ano letivo de 1967, fez com que a turma se posicionasse a respeito das músicas Disparada de Theo de Barros e Geraldo Vandré e A Banda de Chico Buarque, que haviam sido vencedoras do II Festival da Música Popular Brasileira da TV Record no ano anterior.

Foi aí que nos demos conta da beleza que havia na simplicidade e no jogo de palavras de A Banda, que fazia com que até o velho fraco se esquecesse do cansaço e dançasse e a moça feia na janela pensasse que a banda tocava pra ela. Mas foi com a riqueza de significados de Disparada que nos surpreendemos, do homem, do boi, da boiada, do reino que não tinha rei. Certamente enxergamos no poema mais do que Vandré quis dizer.

No II Festival da Música Popular Brasileira, Disparada e A Banda terminaram empatadas e dividiram o primeiro lugar e o prêmio da TV Record, de 30 milhões de cruzeiros. Muitos anos depois, Zuza Homem de Mello, no livro A era dos festivais, uma parábola, fez uma revelação surpreendente. Na verdade a música A Banda é que fora a vencedora do festival, mas Chico Buarque disse a Paulinho Machado de Carvalho que se recusava a receber o prêmio, porque achava Disparada melhor música. E falou a sério. O manda-chuva da Record então reuniu-se com os jurados e resolveram decretar o empate, que acabou premiando as duas canções que tinham a preferência popular. O resultado real foi de 7 votos para a Banda e 5 para Disparada. A versão oficial foi que ficou 6 a 6. Paulinho Carvalho entregou o envelope com os votos a Zuza, recomendando que o guardasse num cofre e mantivesse segredo, que Zuza guardou por muitos anos.
Na época, Chico Buarque tinha 22 anos de idade e era apenas um promissor compositor. Nunca revelou isso a ninguém. 
A melodia de Disparada é de Theo de Barros, que musicou um poema de Geraldo Vandré. Quem cantou a música no Festival foi Jair Rodrigues, acompanhado pelo Trio Novo e pelo Trio Marayá. O Trio Novo foi formado naquele mesmo 1966 e era composto por Theo de Barros, Heraldo do Monte e pelo jovem baterista e percussionista Airto Moreira, que viria a se tornar um dos maiores músicos do mundo. A eles se juntou, no ano seguinte, Hermeto Pascoal e o nome mudou para Quarteto Novo.
A interpretação de Disparada no Festival foi magnífica. Jair Rodrigues, cantor de samba e bossa-nova, já era famoso e fazia com Elis Regina o programa “O fino da bossa” na TV Record. Ele tinha um estilo brincalhão, brincava com tudo, com as músicas, com a plateia, provocava risos no meio das músicas e isso causava certo receio nos autores porque Disparada era uma canção que necessitava de uma interpretação compenetrada. Jair Rodrigues arrasou.
Na final do festival ficou marcada a presença, ao lado de Jair Rodrigues, de um percussionista que tocava um estranho instrumento. Aquilo era uma queixada de burro, que produziu exatamente o som de chicote que os autores queriam e Airto Moreira procurou muito. Após várias tentativas frustradas de obter o som desejado com outros materiais, Airto se lembrou que já ouvira um som produzido por uma queixada de burro numa orquestra espanhola, que podia dar certo. Descobriram um percussionista em Santo André que tinha a tal queixada, compraram-na e o resultado foi ótimo. Quem está estalando a queixada no vídeo é o percussionista Manini, que substituiu Airto Moreira no dia da final.
No Youtube pode ser vista a apresentação de Jair Rodrigues na final desse festival. Relevem a qualidade do vídeo e verão que a música, o arranjo, a interpretação são, de fato, emocionantes.

Prepare o seu coração 

Pras coisas que eu vou contar

Eu venho lá do sertão

Eu venho lá do sertão

Eu venho lá do sertão

E posso não lhe agradar…

Aprendi a dizer não

Ver a morte sem chorar

E a morte, o destino, tudo

A morte e o destino, tudo

Estava fora do lugar

Eu vivo pra consertar…

Na boiada já fui boi

Mas um dia me montei

Não por um motivo meu

Ou de quem comigo houvesse

Que qualquer querer tivesse

Porém por necessidade

Do dono de uma boiada
Cujo vaqueiro morreu…

Boiadeiro muito tempo

Laço firme e braço forte

Muito gado, muita gente

Pela vida segurei

Seguia como num sonho

E boiadeiro era um rei…

Mas o mundo foi rodando

Nas patas do meu cavalo

E nos sonhos

Que fui sonhando

As visões se clareando

As visões se clareando

Até que um dia acordei…

Então não pude seguir

Valente lugar tenente

E dono de gado e gente

Porque gado a gente marca

Tange, ferra, engorda e mata

Mas com gente é diferente…

Se você não concordar

Não posso me desculpar

Não canto pra enganar

Vou pegar minha viola

Vou deixar você de lado

Vou cantar noutro lugar

Na boiada já fui boi

Boiadeiro já fui rei

Não por mim nem por ninguém

Que junto comigo houvesse

Que quisesse ou que pudesse

Por qualquer coisa de seu

Por qualquer coisa de seu
Querer ir mais longe
Do que eu…

Mas o mundo foi rodando

Nas patas do meu cavalo

E já que um dia montei

Agora sou cavaleiro

Laço firme e braço forte

Num reino que não tem rei 

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

Este post tem 6 comentários

  1. Pois é Eliezer. A música, que você trabalha tão bem, é uma bênção.Essa gente toda que você citou é gente iluminada.

  2. Unknown

    Sou apaixonado pela era dos festivais, inclusive tenho o livro.
    Minha história de compositor, aqui pelas bandas de Maceió das Alagoas, passa pelos festivais. Meu primeiro foi em 1977.
    A propósito de Alagoas, Theo de Barros é filho de Theofilo Augusto de Barros Filho, alagoano de São José da Laje, entre outras coisas, parceiro de Guerra Peixe em Fibra de Herói, uma canção patriótica também conhecida como Bandeira do Brasil.
    Ainda sobre Alagoas, Hermeto Pascoal é alagoano de Lagoa da Canoa que fazia parte de Arapiraca antes da emancipação.
    Quanto à você, Geraldes, parece que somos farinha do mesmo saco.
    Rsrsrsrs

  3. Renascimento é mesmo uma boa imagem, Sérgio. Às vezes acho que pode ser saudosismo, mas a qualidade das músicas produzidas naqueles anos foi inigualável. Nesse ponto, nossa geração foi privilegiada.

  4. Anônimo

    Pô Neto, que coisa linda….grande lembramça….o final dos anos 50, os 60 e os 70….foram o novo Renascimento….como se fez coisa boa…nas artes, nos esportes…na literatura, em tudo…foram anos duros no mundo todo…o acordar do pós guerra…..o renascimento da consciência humana….pena que muitos confundiram isso e hoje tão por aí desfazendo essas conquistas…..um abraço Sérgio

  5. Neto Geraldes

    Tinha esperança que você se lembrasse do nome dele. Agora vou ter que descobrir. Tivemos aula com esse professor só um ano. Acho que ele me influenciou muito no gosto pela poesia da mpb. Aqueles anos foram pródigos em grandes poetas e grandes poesias na música popular.

  6. Roberto

    Muito legal, mesmo, Neto, a sua lembrança. Não me lembro, também, do nome do professor. Como você disse, ele dava muita interpretação de texto. Aliás, isso é excelente pois tem gente hoje que sabe ler e não entende o que leu, não é mesmo?!…rsrsrsrs….

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