Bocage e os médicos

Há 250 anos, no dia 15 de setembro de 1765, nascia em Setúbal, Portugal o poeta Manoel Maria Barbosa du Bocage, considerado um dos grandes poetas portugueses. Teve uma vida atribulada, numa Europa atribulada, no meio da Revolução Francesa, num Portugal complicado. Sua produção poética é extensa, que não cabe aqui analisar, por me faltar conhecimento e capacidade para isso. Na sua poesia, entretanto, uma coisa parece certa: decididamente Bocage não gostava de médicos.


Quiron* foi médico insigne,
Segundo nos livros acho;
Porém cavalo o descrevem
Da cintura para baixo
 
Doutor, em nada o semelhas;
Ele foi besta nos pés
Nas ancas, mãos, e costado
Tu, só na cabeça o és.


*(Quíron na mitologia grega é um centauro (cabeça e tronco de homem, corpo de cavalo) que detinha os segredos da cura. Foi ele quem ensinou Asclépio, o deus da medicina)


Na obra do poeta, são várias as referências satíricas e sarcásticas, principalmente na forma de epigramas, aos doutores de seu tempo. Vejam alguns deles:

Doutor, até do hospital
Te sacode enfermo brando
Qual será disto a causal?
É porque, em tu receitando,
Qualquer doença é mortal.

 
“Ante mim não vales nada
(Disse a morte à medicina)
Eu de tudo quanto existe
Sou a fatal assassina.”
“Ui (a mãe dos aforismos
Responde à parca amarela)
Olha a tola! Eu sou o mesmo, 
Mas com mais método que ela”
 
 
Grátis pespega o verdugo
No pescoço, ou laço ou corte
O espadachim mata grátis
O médico vende a morte

A ligação da medicina com a morte é constante nas suas rimas:

Trouxe-se  à pobre doente
Um récipe singular
Morreu do récipe*? Não:
Só da tenção de o tomar.

(*Récipe= receita médica)


Lê-se numa sepultura
De antiguidade afonsina
“Aqui jaz quem não jazera
Se jazesse a medicina”
Aqui jaz um homem rico
Nesta rica sepultura
Escapava da moléstia,
Se não morresse da cura.

No século XVIII, os médicos se valiam de tratamentos agressivos, baseados em sangrias, purgativos, eméticos, sudoríficos, para “equilibrar os humores”, provocando muitas vezes a piora dos infelizes pacientes.  Vista com os olhos de hoje, a medicina era cruel. Bocage tinha essa percepção. E não perdoava:


Um homem rico, outro pobre
Grave moléstia prostrou
Qual deles morreu? O rico,
Que mais remédios tomou.

Consta que um médico fora
Inventor da guilhotina
Deu bem rapidez à morte!
Mostrou saber medicina.
 
Lavrou chibante receita
Um doutor com todo o esmero:
Era para certa moça,
Que ficou sã como um pero
“Tão cedo! É milagre!”(assenta
A mãe, que de gosto chora)
“Minha mãe, não é milagre:
Deitei o remédio fora”

Em 1805, o poeta foi acometido por grave e incurável doença e tinha plena consciência dessa gravidade. Seus últimos meses foram de intensa produção poética.

Nestoreos dias, que sonhava Elmano, 
Brilhantes de almos gostos, de áurea sorte
Pomposa fantasia, audaz transporte,
As asas cerceai do orgulho insano

Plano dum Numen contradiz meu plano,
E quer que se esvaeça. E quer que aborte
Eis, eis palpita, precursor da morte,
No túmido aneurisma, o desengano. 

Num soneto famoso, a reflexão ante a enfermidade que se prenunciava fatal:

Meu ser evaporei na lida insana
do tropel de paixões que me arrastava.
Ah! Cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
em mim quase imortal a essência humana.
 
De que inúmeros sóis a mente ufana
existência falaz me não dourava!
Mas eis sucumbe Natureza escrava
ao mal, que a vida em sua origem dana. 
 
Prazeres, sócios meus e meus tiranos!
 

Esta alma, que sedenta e si não coube,

no abismo vos sumiu dos desenganos.
 
Deus, ó Deus!… Quando a morte à luz me roube
ganhe um momento o que perderam anos
saiba morrer o que viver não soube.
 

Manoel Maria Barbosa du Bocage morreu em 21 de dezembro de 1805, com 40 anos de idade, vítima de um “aneurisma da artéria cervical interior do lado esquerdo”.

Pelo menos foi isso o que os médicos disseram.

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

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