Aprendendo a lidar com infecções. A antissepsia cirúrgica de Lister

Joseph Lister – 1827-1912

É fácil imaginar que qualquer intervenção cirúrgica fosse uma atividade de alto risco na primeira metade do século XIX. As cirurgias eram realizadas sem qualquer preocupação com medidas de antissepsia dos instrumentos, ou das roupas, ou das mãos dos cirurgiões, já que era desconhecido o papel de microrganismos na produção de infecções. A ocorrência de “putrefação” no pós-operatório era muito grande, como também a mortalidade.

Esse estado de coisas começa a mudar quando o The Lancet e o British Medical Journal publicam, no mesmo dia, 21 de setembro de 1867, um artigo com o título On the Antiseptic Principle in the Practice of Surgery. Esse artigo era um trabalho apresentado no Meeting da British Medical Association em Dublin na Irlanda, no dia 09 de agosto de 1867, por Joseph Lister, professor de cirurgia de Glasgow, na Escócia. Nessa publicação, Lister apresentava suas observações relacionadas ao tratamento de feridas e abscessos com a utilização de ácido carbólico, então também conhecido como ácido fênico (hoje fenol). Anteriormente, Lister havia tratado 11 pacientes com fraturas expostas dessa forma. Houve apenas um óbito, por hemorragia, e apenas uma infecção que levou a amputação do membro. Aqui começava a ser a ser construído um novo paradigma na história da medicina: a antissepsia, recebida, como era regra, com ceticismo.

O cirurgião Joseph Lister, nasceu em 1827 em Upton na Inglaterra e terminou seus estudos médicos na Universidade de Londres. Em 1853, tornou-se assistente de James Syme, famoso professor de cirurgia da Universidade de Glasgow na Escócia e logo foi nomeado professor daquela universidade. Casou-se com uma filha de Syme e construiu sua carreira cirúrgica na Escócia.

Seu caso mais emblemático foi o de um garoto de 11 anos, James Greenlees, que tivera fraturas expostas na perna (uma carruagem passou sobre ela) e foi operado no dia 12 de agosto de 1865. Com a utilização do ácido carbólico em curativos, dentro da ferida e em compressas, estendido para a área de pele íntegra, em 6 semanas o paciente teve alta, curado, para espanto dos médicos. Nesses casos de fraturas complexas, quase sempre o tratamento era a amputação e mesmo assim, com alta mortalidade.

A escolha do ácido carbólico para testes como agente antisséptico foi justificada por Lister  pelos efeitos observados de seu uso sobre o esgoto da cidade de Carlisle, não só diminuindo o odor, como por destruir os parasitas que infestavam o gado em todas as terras irrigadas com o esgoto. Ele acreditava que o mecanismo de putrefação dos tecidos era semelhante ao dos esgotos e assim, o ácido carbólico poderia ter efeito antisséptico também nos tecidos humanos. Comprovou a eficácia da substância, associando-a a vários veículos, em numerosos testes, obtendo bons resultados. Para tratar abscessos, ele preconizava primeiro cobrir a pele com uma bandagem com ácido carbólico. Um assistente levantava a bandagem e era feita a incisão. Depois de drenado era colocado na ferida um pedaço de gaze para não fechar e colocado nova bandagem com o ácido carbólico, que era também usado na forma de pasta. No final da década de 1850 Louis Pasteur havia demonstrado que a putrefação e a fermentação eram devidas a ação de microrganismos e não a fenômenos puramente químicos, como a ciência da época postulava. Por volta de 1865 ele conseguiu demonstrar a causa microbiana de uma doença do bicho-da-seda.

Lister sabia que as fraturas expostas tinham um índice de infecção muito mais alto do que as fechadas. A exposição ao ar parecia ser a causa dessa infecção. Tomando conhecimento dos recentes trabalhos de Pasteur, o cirurgião concluiu que a causa da “putrefação” das fraturas expostas eram provocadas não pelo ar, mas pelos “minúsculos organismos” que existiam na atmosfera. Assim, diz ele: “ocorreu-me que a decomposição da ferida podia ser evitada, sem a exclusão do ar, pela colocação de um curativo com algum material que destruísse a vida dessas partículas flutuantes.”  Lister também tinha conhecimento que em 1847, Ignaz Semmelweiss conseguiu reduzir drasticamente a muito elevada mortalidade puerperal no Hospital Geral de Viena, obrigando que, antes de examinarem as parturientes, médicos e estudantes de medicina lavassem as mãos e as desinfetassem com uma solução clorada, para eliminar o que ele chamava de resíduos cadavéricos, pois antes dos exames eles tinham contato com cadáveres em autópsias.

A irritação dos tecidos produzida pelo fenol era conhecida, mas isso, como Lister escreveu em 1908, era um problema menor comparado ao terrível mal que se queria evitar. Antes das cirurgias o ácido carbólico passou a ser utilizado também, em uma solução diluída (1:20), para “purificar” as mãos do cirurgião e dos assistentes. A sala, o instrumental e a pele do paciente também eram borrifados com a solução de fenol.

A popularidade de Lister
inspirando a indústria em 1880

Houve muita contestação às propostas e métodos de Lister pela classe médica, que acabaria se rendendo em meados da década de 1870, quando ele transferiu-se da Escócia para Londres e lá realizou cirurgias complexas bem sucedidas, utilizando seu método. O reconhecimento foi então muito expressivo, alcançando grande prestígio internacional.  Foi agraciado com o baronato, passando a ter o título de Lord Lister. Morreu em 1912 aos 84 anos de idade.


Links para textos relacionados ao tema no blog: 
Semmelweiss 1
A revolução de Semmelweiss
Teoria Microbiana das doenças

Referências
1. Lister, Joseph. On the Antiseptic Principle in the Practice of Surgery. The Lancet. Volume 90, Issue 2299, 21 September 1867, Pages 353–356, 1867.
2. Biennial Retrospect of Medicine, Surgery and their Allied Sciences. Londres : The New Sydenham Society, 1869.
3. Brand, Richard A. Biographical Sketch: Baron Joseph Lister, FRCS, 1827–1912. Clin Orthop Relat Res. 468(8): 2009–2011, 2010.
4. Gaw, Jerry L. A Time to Heal”: The Diffusion of Listerism in Victorian Britain. Philadelphia : American Philosophical Society, 1999.
5. Lister, Joseph. Some points in the history of antiseptic surgery. british medical journal. jun 27; 1(2478): 1557–1558, 1908.
6. Torres, JC. Vultos da medicina antis-sepsia (2ª parte). Revista da Faculdade de Ciências Médicas de Sorocaba. 2003, Vol. 5, 2.
7. Gilmore, OJA. 150 years after A tribute to Joseph Lister. Annals of the Royal College of Surgeons of England vol 59. 1977.

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

Este post tem 2 comentários

  1. Obrigado por ler o blog, Matta. Foi realmente um grande avanço, principalmente pela quebra de antigos paradigmas.

  2. Que passo fantástico, então!
    Meu avô, nascido nos anos 80 do século IXX, dentista usava ácido fênico canforado, seja em qualquer ferimento, seja em tratamento de canal e era um sucesso total.
    Parabéns pelo seu blog, Neto.

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