A origem da quarentena

O conceito de quarentena existe pelo menos desde meados do século XIV e está historicamente relacionado com a ideia de impedir o contato com pessoas acometidas ou potencialmente portadoras de doença contagiosa para evitar sua propagação. Tem, mais modernamente, o significado de confinar pessoas, animais e mesmo objetos que tiveram contato com doenças contagiosas até que transcorra o tempo de incubação máximo da doença ou ainda de afastar do convívio social grupos de pessoas e animais que corram o risco de exposição a agentes infecciosos.

Ragusa (Dubrovnik) em 1667

Em 1347, a Europa começou a vivenciar uma terrível epidemia de peste bubônica, que ficou conhecida como a Peste Negra.  Os primeiros casos da peste no continente europeu apareceram no porto mediterrâneo de Messina. Foi trazida por embarcações genovesas procedentes do oriente, mais especificamente de Kaffa (hoje Theodosia) na Crimeia, que era um importante ponto comercial. De Messina, na Sicília, a peste se estendeu para Gênova e Veneza e acabou em pouco tempo atingindo toda a Europa, com consequências catastróficas, dizimando entre 25 e 50% da população do continente, conforme as estimativas da historiografia. A epidemia durou cerca de cinco anos, mas a doença ainda permaneceu de forma endêmica.

Não é difícil imaginar o impacto que tão terrível mortandade provocou no imaginário do homem medieval. A ciência da época nem cogitava a possibilidade de uma doença ser causada por micro-organismos, mas já tinha estabelecido o conceito de contágio. A percepção de então era que a peste seria transmitida pelas pessoas doentes, mas ainda não tinha sido determinado o papel epidemiológico dos ratos e das pulgas. O medo, a angústia que a Peste Negra evocava levava a atitudes extremas, como a do Visconde Bernabo de Reggio, na atual Itália que, em 1374, determinou que todo doente de peste fosse levado para o campo, fora da cidade e lá permanecesse até se recuperar ou morrer.    

Peste negra
Ilustração da Biblia de Toggenburg de 1411

Foi assim que em 1377, ante à ameaça de uma nova epidemia de Peste Negra, o Conselho de Ragusa (hoje Dubrovnik, na Croácia) que na época pertencia à Veneza, determinou que todas as pessoas e mercadorias de  embarcações procedentes de locais onde existia a doença somente poderiam desembarcar após um período de 30 dias da chegada, uma trentina. Para as pessoas que chegassem por terra, o prazo foi estendido depois para quarenta dias fora dos muros da cidade. Esses tempos seriam cumpridos em ilhas próximas, como a Ilha de Mrkan, ou na cidade de Catvat. Essa determinação foi complementada por outra que proibia aos habitantes de Ragusa terem contato com as pessoas, navios ou mercadorias que estivessem cumprindo esse período de reclusão. Os que desobedecessem teriam que ser isolados por igual prazo antes de regressar.

Várias outras localidades de todas as partes da Europa foram adotando medidas semelhantes a essas, padronizando um prazo de quarenta dias, uma quarantina, para observação. Seguindo a mesma linha do isolamento de doentes, Veneza, ainda no mesmo porto de Ragusa, criou os primeiros lazaretos, denominação que faz referência à figura bíblica de Lázaro, curado por Jesus. Esses lazaretos eram locais e construções localizados fora dos muros da cidade destinados a recolher e isolar os doentes de lepra, mas funcionavam também como abrigo e até prisão. É bom lembrar que na época eram rotulados como leprosos todos os doentes com lesões cutâneas de aspecto mais grave.

As providências sanitárias de Ragusa foram o primeiro registro histórico da adoção da quarentena, como ficou posteriormente conhecida a medida, nomeada justamente em referência à palavra italiana quaranta, (40). Não se sabe ao certo por que foi estabelecido esse prazo de 40 dias. Numa sociedade extremamente religiosa, é possível que esteja relacionada às várias representações bíblicas do número quarenta, como os 40 dias que Moisés passou no Monte Sinai ao receber as tábuas com os dez mandamentos, ou aos 40 dias que Jesus passou no deserto para se purificar, ou ainda com o dilúvio, que durou 40 dias e 40 noites, também relacionado com a purificação da humanidade.

Referências

1. Tognotti, E. Lessons from the History of Quarantine, from Plague to Influenza A. Emerg Infect Dis 19 (2) :254-259 . 2013.
2. Gensini, GF, Yacoub , MH e Conti, AA. The concept of quarantine in history: from plague to SARS. J.Infect. 49 (4):257-61, 2004.
3. J, Kelly. A grande mortandade. [trad.] Caetano Waldrigues Galindo. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 2011.
4. Madden, TF. Venice, a new history. New York USA : Penguin Group, 2012.
5. Mc Neill, WH. Plagues and Peoples. USA : Anchor Books, 1979.
6. Mafart B, Perret JL. History of the concept of quarantine. Med Trop (Mars). 1998;58(2 Suppl):14-20
7. Sehdev, P. The origin of quarantine. Clinical Infectious Diseases. 35:1071-2, 2002.


Revisão: Ana Raquel Costa Geraldes

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

Este post tem 2 comentários

  1. SONIA PIRES

    Naquela época quando a doença e religiosidade se misturavam foi bem oportuna a observação da contagio da doença, embora fosse transmitida por pulgas, a introdução da quarentena foi bem vinda! È sempre bom rever a história da peste negra. Ótimo texto.

  2. Unknown

    Neto, é sempre uma delícia ler o que você escreve. Principalmente, cumprindo uma "quarentena". Abraços.

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