A loucura de um gênio da música. Schumann e a sífilis

Inverno de 1854. Em 27 de fevereiro, o compositor alemão Robert Schumann recebeu a visita de seu médico Dr. Hasenclever e do amigo Albert Dietrich. Em algum momento da conversação, o músico levantou-se em silêncio e saiu da sala. Como não retornou, os amigos e sua esposa Clara, saíram à sua procura. Schumann havia saído de casa e andado até uma ponte sobre o Reno e tentou o suicídio, atirando-se nas águas geladas do rio. Foi salvo por barqueiros que estavam no local. Schumman tinha antecedentes de episódios depressivos, mas naquele fevereiro, o seu estado mental estava consideravelmente agravado. No começo do mês teve um quadro de intensos zumbidos e distúrbios auditivos. Passou a ouvir vozes e sons musicais. Acreditava que eram produzidas por seres angelicais, entre eles Schubert, que lhe ditou uma obra inteira.

Schumann em 1839

Foi internado no dia 04 de março em um sanatório para doentes mentais em Endenich, nas proximidades de Bonn, onde ficou sob os cuidados do Dr. Franz Richarz e de onde nunca mais saiu. No asilo, o quadro mental se deteriorou, experimentando alucinações frequentes. Schumann faleceu no dia 28 de julho de 1856, aos 46 anos de idade. O Dr. Richarz divulgou os achados da necropsia feita em seu paciente ilustre: dilatação dos vasos sanguíneos, especialmente os da base do cérebro, onde havia ossificação e desenvolvimento de massas irregulares que perfuravam o revestimento cerebral externo, concreção e degeneração dos revestimentos internos do cérebro, que estava atrofiado, pesando sete onças menos do que um normal. Richarz diagnosticara uma paralisia incompleta e explicava a loucura de Schumann: as causas dessas alterações eram um exercício mental excessivo, ao qual os artistas, principalmente os da música, estariam sujeitos. O cérebro quando muito exigido seria distendido por um fluxo sanguíneo aumentado, proporcional ao excesso de trabalho. Isso levaria a edema dos vasos sanguíneos, empobrecimento do sangue, causando ossificação, concreção e degeneração dos tecidos.

Apesar dessa opinião etiológica, coerente com sua época,  uma teoria bem aceita hoje é que a doença do artista tenha sido decorrente de manifestações neurológicas da sífilis terciária. Embora não existam provas conclusivas da infecção treponêmica, existem elementos que ajudam na consolidação desta hipótese. O próprio Richarz forneceu elementos para isso. Ele manteve anotações sobre a evolução clínica de seu ilustre paciente em um diário, que todavia só foi tornado público em 1991. Nesses registros há uma anotação chave, no dia 12 de setembro de 1855 em que relata que Schumann fazia anotações de conteúdo melancólico e numa delas dizia: Em 1831 eu era sifilítico e fui tratado com arsênico.

No diários e cartas deixados por Schumann há relatos que podem indicar a época do contágio. Em maio de 1831 registrou uma ferida no pênis, que causava uma dor cortante. Na época, seu amigo violoncelista Christian Glock, que era médico, recomendou o uso de água de Narciso, preparada com ervas, para lavar a lesão. Pouco tempo depois ele se queixou à mãe de sintomas do que pensava ser cólera ou algo parecido. Pode ser que a ferida peniana e as alterações sistêmicas, correspondam às manifestações da sífilis primária e secundária. O historiador da medicina Franz Hermann Franken listou vários indícios de uma possível paralisia progressiva sifilítica nas anotações do diário do Dr Richarz, como episódios de fala ininteligível, convulsões, deteriorações da personalidade, dilatação divergente da pupila. A autópsia mostrou uma massa na base do crânio, que poderia corresponder a uma goma da sífilis terciária.

Robert Schumann e Clara

A vida de Schumann é recheada de eventos dramáticos que inspiraram filmes e livros de sucesso e foi marcada pela melancolia, bem caracterizada na sua música. Ele nasceu em 1810, em Zwickau na Saxonia, mudando-se para Leipzig para estudar direito, curso que abandonou para dedicar-se exclusivamente à música. Casou-se, em 1940, contra a vontade do sogro, com Clara Wieck, (1819- 1896), excelente pianista, filha do seu mestre de piano. Clara e os filhos não foram contaminados pela sífilis. O grande compositor Johannes Brahms (1833-1897) teve papel importante na vida do casal, mantendo uma amizade estreita (especula-se sobre um relacionamento amoroso) com Clara, que  persistiu após a morte de Robert Schumann.

Referências

1. Schumann, Robert. Music and musicians- Essays and criticisms. [trad.] F R Ritter. London : William Reeves, 1877.
2. Wasielwski, W J. Life of Robert Schumann. [trad.] A L Alger. Boston: Oliver Ditson, 1871.
3. Hayden, Deborah. Pox: Genius, Madness, and the Mysteries of Syhilis. New York: Basic Books, 2003.
4. Wright, A. Dickson. Venereal disease and the great. British Journal Venereal Diseases. 47, 1971, pp. 295-306.
5. Daverio, John. Robert Schumann: Herald of a “New Poetic Age”. New York – Oxford : Oxford University Press, 1997.
6. Ostwald Peter. Schumann: The Inner Voices of a Musical Genius, Boston: Northeastern University Press, 1985

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

Este post tem 2 comentários

  1. SONIA PIRES

    Seu relato mostra a intimidade dessas personalidades. Quando ouvimos suas composições, que nos trazem felicidade plena, não temos idéia de como suas vidas eram sofridas devido a uma série de doenças que hoje tratamos com facilidade.

  2. Unknown

    Interessante mesmo, a leitura dos seus relatos dá-nos uma visão dos comportamentos e dos recursos conhecidos em cada época.Coisas que eu nem imaginava.

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