A lei que criou as faculdades de medicina no Brasil

A Santa Casa do Rio de Janeiro
A história das faculdades de medicina no Brasil começa em 1808, logo que a Família Real Portuguesa chegou ao Brasil. Neste mesmo ano foram criadas duas escolas formadoras de cirurgiões, primeiro em Salvador e em seguida no Rio de Janeiro, devido à grande carência desses profissionais na colônia. Observe-se que essas escolas habilitavam apenas cirurgiões, o direito de exercer a medicina continuava monopólio dos médicos (físicos) formados geralmente em Coimbra.
Posteriormente, as Escolas de Cirurgia do Rio de Janeiro (em 1813) e da Bahia (em 1815) foram transformadas em Academias Médico-Cirúrgicas, que também qualificavam apenas cirurgiões, e em reforma de 1826 passaram a conceder o título de médicos. Posteriormente, por meio da lei de 03 de outubro de 1832, que dava “nova organização ás actuaes Academias Medico-cirurgicas das cidades do Rio de Janeiro, e Bahia”, as Academias deram origem às Faculdades de Medicina. Neste post analisaremos alguns aspectos dessa lei.
A lei de 03 de outubro de 1832, que é identificada apenas pela data, sem numeração, foi decretada pela Assembléa Geral Legislativa e sancionada pelos membros da Regência Trina Permanente: Francisco de Lima e Silva, José da Costa Carvalho e João Braulio Muniz e foi encaminhada para execução ao Ministro e Secretário de Estado dos Negocios do Imperio, Nicolau Pereira de Campos Vergueiro. (*) Ela foi elaborada e sancionada durante o período regencial, mais especificamente o da Regência Trina Permanente.

 Na sociedade brasileira da época havia grande carência de médicos, e mesmo de cirurgiões e proliferavam curandeiros e charlatães. No Brasil, a assistência aos doentes era feita de maneira precária por profissionais distintos: físicos, doutores, cirurgiões e barbeiros. Os físicos eram médicos diplomados geralmente portugueses, ou eventualmente brasileiros que estudaram em Coimbra ou outras faculdades de medicina da Europa e os doutores eram médicos titulados por defesa de tese magna. Eram muito poucos no Brasil. Mais frequentes eram os cirurgiões, habilitados a fazerem sangrias, drenagens, aplicações de cataplasmas e tratamento de ferimentos. Os cirurgiões não eram autorizados a medicar os pacientes, a não ser nas localidades onde não existissem físicos. Os barbeiros exerciam papel importante na cadeia do atendimento médico, ao aplicarem bichas, fazerem sangrias e tratamento de feridas.

Por essa lei, foram criadas 14 cadeiras do Magistério em cada Faculdade, com um professor para cada cadeira, sendo todos de profissão medica e 6 substitutos.
Inicialmente, as cadeiras que por acaso ficassem vagas seriam supridas pelos outros membros da Faculdade e, se necessário, por outras pessoas com capacidade, podendo admittir estrangeiros na falta de nacionaes. Note-se que a nação brasileira estava em formação, o Brasil havia deixado de ser colônia portuguesa apenas 10 anos antes. 
As 14 cadeiras de cada faculdade, que seriam ministradas ao longo de 6 anos: 
Physica Medica,
Botânica medica e princípios elementares de Zoologia
Chimica medica e princípios elementares de Mineralogia
Anatomia geral e descriptiva
Physiologia
Pathologia externa
Pathologia interna
Pharmacia, matéria medica especialmente a brazileira
Therapeutica e arte de formular
Anatomia topographica, medicina operatória e aparelhos
Partos, moléstias de mulheres pejadas, e paridas, e de meninos recém-nascidos
Hygiene e Historia da Medicina
Medicina legal
Clínica externa e Anatomia pathologica respectiva
Clínica interna, e Anatomia pathologica respectiva
A administração da faculdade ficaria a cargo de um diretor nomeado trienalmente sobre uma lista tríplice elaborada pela faculdade, um secretário e um tesoureiro. 
Os salários seriam concedidos da seguinte forma:
Lentes proprietários…1conto e 200 mil reis
-Substitutos…800 mil reis
-Secretário…800 mil reis
-Porteiro…400 mil reis

Não está especificado no texto a periodicidade desses salários. Acredito, porém que se refiram a vencimentos anuais, uma vez que os valores são semelhantes aos recebidos anualmente pelos médicos em Portugal em épocas próximas. 
Pela nova legislação, a faculdade passaria a conceder os títulos de Doutor em medicina, Farmacêutico e Parteira sem os quais ningém poderia: curar, ter botica e partejar, enquanto não houvesse regulamentação, com exceção dos boticários, parteiras e cirurgiões já habilitados pela antiga lei. 
O curso de Farmácia teria duração de 3 anos e 4 cadeiras: 
Physica Medica
Botânica medica e princípios elementares de Zoologia
Chimica medica e princípios elementares de Mineralogia
Pharmacia, matéria medica especialmente a brazileira, Therapeutica e arte de formular.
Seria obrigatória a prática de 3 anos em botica e o aluno só receberia o título de Pharmaceutico depois de ter cumprido essa prática e de ter sido aprovado pelo boticário que supervisionou. Observe-se que o profissional passa a ser denominado de farmacêutico e não mais de boticário.
A faculdade ainda ministraria um curso particular para as Parteiras, feito pelo Professor de Partos.
O ano letivo iria de março a outubro e os exames anuais ocorreriam no máximo até o dia 20 de dezembro.
Exigências para admissão do estudante que deseja o grau de Doutor em Medicina:
1º – Ter pelo menos dezaseis annos completos
2º – Saber Latim, qualquer das duas Linguas Franceza, ou Ingleza, Philosophia Racional ou Moral, Arithmetica e Geometria.
Para aquele que desejava o grau de Farmacêutico as exigências eram menores. Não era necessário o conhecimento de Latim e Filosofia e bastava ter conhecimentos de Geometria Plana.
Para a mulher que se matriculava para obter o titulo de Parteira exigia-se idade mínima de 16 anos, que soubesse ler e escrever, mas tinha que apresentar um Attestado de bons costumes passados pelo Juiz de Paz da Freguesia respectiva. 
Os alunos seriam submetidos a exames anuais. Para obter o grau de Doutor seriam obrigados a sustentar tese pública, que seriam escritas em latim ou português.
As faculdades tinham ainda a prerrogativa de validar e legalizar títulos obtidos em escolas estrangeiras por médicos cirurgiões e boticários, mediante exames e pagamento de taxas. O dinheiro obtido com as taxas de validação dos títulos e as matrículas dos alunos seria destinado à compra de livros para a biblioteca da faculdade. 
Cirurgiões formados e cirurgiões aprovados pelas antigas Academias Medico-cirurgicas e os estudantes daquelas escolas poderiam obter o grau de Doutor mediante exames, sendo dispensados das disciplinas que já tivessem cursado. Se quisessem manter-se apenas como cirurgiões, as Faculdades emitiriam o título como no tempo das Academias.
      Indivíduos formados em escolas estrangeiras poderiam obter o titulo de Doutor nas escolas do Brasil, submetendo-se a exames de suficiência, sendo dispensados da freqüência das aulas.
Pode-se depreender que a lei de 03 de outubro de 1832 foi elaborada por um lado para tentar dimimuir as graves deficiências na assistência médica à população da época e por outro lado valorizar o conhecimento técnico nessa assistência. A Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro teve papel fundamental na sua preparação, ao modificar substancialmente o projeto original de autoria do deputado baiano, também médico Lino Coutinho. 
    A preocupação com a valorização do conhecimento está expressa na concepção de que apenas pessoas devidamente treinadas e após cumprirem uma programação escolar bem definida, estariam aptas a exercer a arte de curar. Essa preocupação está expressa também na decisão de dar destinação específica para a compra de livros, ao dinheiro arrecadado com taxas de validação de títulos e matrículas. 
      
       Note-se que no segundo quartel do século XIX diversos avanços no conhecimento técnico já tinham ocorrido na Europa, principalmente na França. Não por acaso, essas Faculdades de Medicina do Brasil seguiam a orientação francesa. 
        Um aspecto interessante da lei é a exigência de ser cidadão brasileiro para ingressar como professor substituto, numa época a maioria dos médicos diplomados e doutores eram portugueses. De modo aparentemente paradoxal, no mesmo artigo, a lei faculta a contratação de estrangeiros na falta de nacionaes. A Constituição de 1824 estabelecia que eram cidadãos brasileiros todos os homens livres nascidos no Brasil ou naturalizados brasileiros. 
        Outro ponto que chamou a atenção foi a exigência de atestado de bons antecedentes para as mulheres que desejavam ser parteiras. Para os homens que se candidatavam a médico ou farmacêutico, tal cobrança não era feita. Note-se que o curso de medicina era vedado às mulheres. As primeiras mulheres foram admitidas na Faculdade de Medicina apenas em 1884. A primeira mulher diplomada médica em uma Faculdade de Medicina no Brasil foi Rita Lobato Velho Lopes, admitida em 1884 na Faculdade do Rio de Janeiro.
       A obstetrícia parece ser pouco valorizada à época, pois não se exigia nenhum conhecimento das candidatas à parteira, a não ser que soubessem ler e escrever. Não era uma função para homens. Às parteiras cabia também atendimentos e aconselhamentos por problemas ginecológicos. Em 1832 não havia enfermaria obstétrica na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, onde funcionava a escola. O ensino era teórico e utilizando-se eventualmente manequins. Apenas em 1875 é que seria instalada, no Hospital São Cristóvão, uma unidade obstétrica, mesmo assim com instalações precárias e procura muito pequena por parte das gestantes.
A remuneração do professor pode ser um bom indicador do seu prestígio. Infelizmente ainda não consegui informações que permitissem comparar o salário percebido pelo professor de medicina com o de outras profissões, a não ser que o salário dos Lentes Proprietários passou a ser equivalente ao de um desembargador. Para efeito de comparação, com o salário do Lente titular (1 conto e duzentos mil réis) era possível comprar 5 escravos-padrão na época, que custavam em média 238 mil réis cada um. Escravo Padrão era o negro com idade entre 15 e 40 anos, livre de doenças e defeitos físicos. Na década de 30 o preço do escravo estava relativamente alto e era praticamente o dobro do preço em 1810. 
(*)FRANCISCO DE LIMA E SILVA (1785-1853): Foi membro da Regência Trina Provisória (1831) e da Regência Trina Permanente (1831-1835) e Senador de 1837 a 1853. Recebeu em 1841 o título Barão de Barra Grande, mas recusou. Por ter participado de duas regências recebeu o apelido de “Chico Regência”. Era pai de Luis Alves de Lima e Silva, o futuro Duque de Caxias.
JOSÉ DA COSTA CARVALHO (1796-1860): Marquês de Monte Alegre. Foi membro da Regência Trina Permanente (1831-1835), representante do sul,  e Primeiro- Ministro do Império (1849-1852).
JOÃO BRAULIO MUNIZ (1796-1885): Deputado, membro da Regência Trina Permanente.
NICOLAU PEREIRA DE CAMPOS VERGUEIRO (1788-1859): Senador Vergueiro. Nascido em Portugal, foi deputado às cortes de Lisboa em 1822 e senador do Império com 10 mandatos. Foi também membro do Gabinete Imperial de 1832 a 1835. Político e proprietário rural, foi pioneiro na experiência de utilização de mão-de-obra européia na lavoura.

Bibliografia de apoio 

Fonte: Lei de 03 de outubro de 1832, obtida na Câmara dos deputados
ROCHA, Leduar Assis: Médicos, Cirurgiões e Boticas, Recife: Livraria Universal, 1941.
SANTOS FILHO, Lycurgo: História geral da Medicina Brasileira, São Paulo, Hucitec, 1977
SANTOS FILHO, Lycurgo: Pequena História da Medicina Brasileira, São Paulo: São Paulo Editora, 1966
FERREIRA, LO, FONSECA MRF, EDLER FC. A faculdade de medicina do Rio de Janeiro no século XIX in Espaços da Ciência no Brasil, DANTES MAM (organizadora) Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, 2002
VAINFAS, Ronaldo: Dicionário do Brasil Imperial, Rio de Janeiro, Objetiva, 2002
BRENES, Anayansi Correa: História da Parturição no Brasil, Artigo disponível na WEB no site: http://www.scielo.br/pdf/csp/v7n2/v7n2a02.pdf
CAPUANO, Ivonne: Rita Lobato Velho Lopes in Vultos da Medicina Brasileira, obtido no site da Sociedade Brasileira de História da Medicina: http://www.sbhm.org.br/index.asp?p=medicos_view&codigo=203
GRAÇA, Luis: Diferenciação Socioeconómica dos Praticantes da Arte Médica até ao Século XIX- disponível na WEB no site: http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos61.html
RIBEIRO, Lourival: Figuras e Fatos da Medicina no Brasil, Rio de Janeiro: Editora n/inf, 1964.
VERSIANI, Paulo e VERGOLINO, José R. O. : Preços de escravos em Pernambuco no século XIX,  Universidade de Brasília, Departamento de Economia, Série: Textos para discussão, obtido no site: 
http://www.unb.br/face/eco/cpe/TD/252Oct02FVersiani.pdf

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

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