Edward Jenner e a vacina antivariólica

180216

National Library of Medicine History of Medicine Collection (1802)
A pústula da vaca ou Os maravilhosos efeitos da nova inoculação
A vacinação encontrou muita resistência na população e na imprensa.
A varíola era uma doença grave, milenar, que se manifestava endêmica e epidemicamente em todo o mundo, com alta taxa de letalidade. Foi a grande responsável pela dramática diminuição populacional que se verificou entre os índios americanos quando da chegada dos espanhóis no final do século XV. Certamente a conquista dos astecas por Cortez só foi possível por conta da terrível catástrofe biológica provocada pela epidemia de varíola entre os índios. Ao ser introduzida na América, o vírus da varíola encontrou uma população isolada há séculos, sem qualquer contato com outras civilizações e totalmente desprovida de qualquer defesa imunológica e se manifestou com extrema virulência.
Os antigos egípcios já conheciam a doença. Há marcas sugestivas de varíola na múmia de Ramses V que morreu em 1142 a.C. Ela foi introduzida na Europa provavelmente no século V e  várias epidemias ocorreram durante a idade média, com alta letalidade. A humanidade continuou convivendo com a varíola ao longo dos séculos, com frequentes epidemias e graves consequências.

Cowpox´(Jenner Museum)

            Ao longo do tempo, empiricamente, foi sendo observado que a varíola só atacava o indivíduo uma única vez e que se fosse possível produzir uma doença mais fraca, aquele individuo estaria protegido para sempre. Os chineses sopravam pó da crosta das feridas em indivíduos sãos, os hindus tentavam o contato com vestimentas dos doentes na esperança de produzir uma varíola mais fraca. Com esse mesmo objetivo, no século XVIII os médicos começaram a desenvolver a técnica da variolização, que consistia em inocular o pus de uma pústula variólica numa pessoa sã. Apesar de provocar, muitas vezes, formas graves de varíola, a variolização tornou-se popular e foi adotada por muitos países.


            Na Inglaterra era conhecida uma doença chamada cowpox, que provocava bolhas parecidas com as da varíola no ubre de vacas, que frequentemente eram transmitidas para as mãos dos ordenadores. A observação popular já havia percebido que quem havia tido cowpox não contraia varíola.

Edward Jenner e a vacina

            No final do século XVIII, o médico britânico Edward Jenner (1749- 1823), (ele mesmo submetido à variolização quando criança), intrigado com essa constatação e certamente influenciado pela técnica da variolização, fez logo a experiência fundamental: no dia 14 de maio de 1796 inoculou uma criança (de nome Jacobo Phips) com material da pústula de uma vaca com cowpox. A criança desenvolveu pústulas no local da inoculação, mas logo ficou boa. Em 01 de julho do mesmo ano inoculou a mesma criança, agora com material colhido de pústula de um paciente com varíola e o menino não manifestou qualquer sintoma da varíola.

            O pus do cowpox inoculado no humano provocava pústulas no local da inoculação. Estas pústulas então eram reinoculadas em outras pessoas, e dessas em outras, formando uma cadeia de vacinação. O termo vacina, derivado do latim vacca passou a ser usado para designar o procedimento desenvolvido por Jenner e também para a cowpox. (3)Mais tarde foi desenvolvida a forma “animal” da vacina, passando-se a empregar o vitelo como produtor do “pus variólico”.

Em 1797, Edward Jenner fez a comunicação de suas observações à Real Sociedade de Medicina que não a recebeu bem. O trabalho ao lado foi publicado por Jenner, por conta própria, para dar ciência de sua experiência. 

            Os programas de vacinação foram sendo desenvolvidos ao longo do tempo, não raro com grande resistência da população e exigindo intervenções dos governos. O sucesso final é conhecido. O último caso natural de varíola que se teve notícia foi o de um cozinheiro de hospital na Somalia chamado Ali Maow Maalin, em outubro de 1977 que conseguiu se restabelecer. Sua última vítima fatal foi Janet Parker, uma fotógrafa de medicina que foi contaminada acidentalmente por vírus de laboratório no Birmingham Medical School Uiversity, na Inglaterra. A varíola foi a primeira doença a ser totalmente erradicada no mundo por conta de intervenções médicas. A Organização Mundial de Saúde declarou a varíola oficialmente extinta na face da terra em 08 de maio de 1980. 
Manifestações graves da varíola


Com a erradicação da moléstia, não houve mais necessidade da vacinação. Com isso, grande parcela da população encontra-se agora sem qualquer imunidade, o que tem provocado temor em alguns círculos científicos, da utilização da varíola como arma biológica no caso de existirem laboratórios que disponham secretamente de cepas do vírus.

A doença foi totalmente eliminada. O vírus ainda não. A OMS decretou que todos os países destruíssem seus vírus. Apenas dois laboratórios no mundo mantém amostras do virus variólico: um nos Estados Unidos e o outro na Rússia. 

A OMS deve decidir em 2014 se ordenará a destruição definitiva desses últimos(?) exemplares remanescentes do vírus da varíola. 

           
Referências
1. Gazêta, Arlene Audi Brasil. Uma Contribuição à História do Combate à Varíola no Brasil: do combate à erradicação (tese). Fiocruz. 2006.
2. Riedel, Stefan. Edward Jenner and the history of smallpox and vaccination. Proc (Bayl Univ Med Cent). 2005 January; 18(1): 21–25.
3. Lopes, Myriam Bahia. O sentido da vacina, ou quando prever é um dever. História, Ciências, Saúde, Manguinhos. III (1): 65-79, Mar.-Jun. , 1996.
4. Fernandes, Tania. Vacina antivariólica: seu primeiro século no Brasil (da vacina jenneriana à animal). Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.6 no.1 Rio de Janeiro Mar./June . 1999.
5. Verani, José Fernando. Vacina antivariólica: Ciência, técnica e o poder dos homens, 1808-1920. s.l. : Editora Fiocruz (Coleção História e Saúde)., 2010.
6. Gani, Raymond e Leach, Steve. Transmission potential of smallpox in contemporary populations. Nature 414, 748-751 (13 December 2001) | . 2001.

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

Este post tem 3 comentários

  1. Lázaro Marques de Andrade

    Neto, o seu artigo “Edward Jenner e a vacina antivariólica” é bastante interessante e oportuno.
    E a possibilidade do uso de cepas deste vírus – ainda estocadas em alguns países – como arma biológica é bastante preocupante.
    Também é preocupante a situação da vacina Covid no momento atual.
    Como a relação risco-benefício da mesma ainda não está bem estudada, e ainda gera discussões, a sua “precipitada” utilização em massa gera dúvidas e incertezas.
    Ansiamos por uma vacina eficiente contra o Covid19, e também que nos dê segurança quanto a possíveis efeitos deletérios, inclusive de longo prazo.
    Como estão sendo apresentados vários tipos de vacinas anti-covid19 até agora, infere-se que ainda não ficou claro qual apresenta a melhor relação risco-benefício-eficácia.
    Sem o “veredicto da ciência”, cabe a cada um de nós avaliar o risco-benefício de se vacinar no momento atual.
    Na dúvida, eu opto pela conduta expectante por enquanto, e aguardar pelo aprimoramento no processo de produção das mesmas, com a consequente seleção da vacina de melhor eficácia e segurança.
    Abraço para o amigo Dr Neto.

  2. Obrigado, Elizeu. Há alguns anos fiz uma pesquisa sobre as epidemias que assolaram os indios americanos quando da chegada dos espanhóis e fiquei muito impressionado com o cenário que formei na minha cabeça, da catástrofe que foram as epidemias de varíola. A erradicação da doença foi um feito formidável, a descoberta/invenção da vacina por Jenner é um dos acontecimentos mais importantes da história da medicina, na minha opinião.

  3. Branco

    Facetas históricas de singular interesse, sempre bem escritas aqui no blog. Esclarecedor e com o trabalho de pesquisa do blogueiro. Parabéns Neto.

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