Na manhã do dia 04 de julho de 1885, o menino Joseph Meister, de nove anos de idade, filho de um padeiro estava indo à vila de Maisonsgoutte, na Alsacia, para comprar fermento em uma cervejaria. Logo ao chegar à vila foi atacado por um cão raivoso, sofrendo mordeduras que lhe provocaram 14 ferimentos em braços e pernas. As lesões eram graves, mas mais grave era o prognóstico. A raiva era uma doença fatal, sem possibilidade de cura. O dono do cão, Theodore Vonné, também sofreu uma mordida no braço, que protegido pela roupa, não deixou ferimento. O cachorro atacou outras pessoas e acabou sendo abatido por policiais. Não havia dúvidas de que o cão era raivoso.
Habitantes da localidade comentaram que em Paris um cientista chamado Louis Pasteur estava fazendo experiências com raiva em animais. Agarrando-se a essa que era a sua única esperança, a mãe de Joseph resolveu tentar falar com o cientista, apesar da grande distância entre Maisonsgoutte e Paris. Viajaram Joseph, sua mãe e Vonné, o dono do cachorro, chegando à capital da França no dia 06 de julho, pelo trem de ferro. Depois de muitos percalços conseguiram localizar e falar com Pasteur.
O químico Louis Pasteur (1822-1895) já gozava de grande prestígio na época. Ele havia sido o grande mentor da teoria de que os germes poderiam causar doenças. No final da década de 1850 ele mostrou que a fermentação e putrefação não eram fenômenos exclusivamente químicos como se pensava e sim devidos a ação de micro-organismos. Mais tarde, comprovou a causa microbiana de uma doença (pebrina) do bicho-da-seda, que estava arruinando a indústria francesa da seda. Outras pesquisas comprovaram que os micróbios eram capazes de provocar doenças, estabelecendo as bases da “teoria microbiana” ou a “teoria dos germes”.
Note-se que no terço final do século XIX os vírus ainda não eram conhecidos, nem havia o conceito de sistema imunológico. A palavra “vírus” empregada na época tinha ainda o sentido de “veneno”, ou agente genérico causador de uma doença infecciosa. Pasteur tinha a convicção de que era possível isolar e cultivar os microrganismos que provocavam as doenças e encontrar uma vacina para essas doenças. Ele já vinha fazendo pesquisas sobre a raiva animal desde 1880 e embora não houvesse identificado o vírus, já havia conseguido formas atenuadas desse agente, “cultivadas” em medula de coelhos, por uma técnica de desidratação dos tecidos infectados. Quanto mais tempo de dessecação menos virulenta era a cepa. Pasteur já havia feito experiências bem sucedidas em cães. Ele visava prevenir a raiva nesses animais antes que eles tivessem contato com o vírus, mas trabalhou também com cachorros que já tinham sido mordidos por outros cães raivosos, com bons resultados.
O menino Meister estava condenado à morte. O prognóstico era péssimo. À vista do quadro dramático, de evolução inexoravelmente fatal, Pasteur solicitou o apoio e supervisão dos professores de medicina Joseph Grancher e Alfred Vulpian e resolveu tentar com o menino o tratamento que fizera com sucesso em cerca de 50 cães. O tratamento consistia em aplicar por via subcutânea, injeções de uma suspensão com o vírus atenuado.
No dia 06 de julho de 1885 começaram a ser aplicadas as injeções, iniciando com cepas muito atenuadas (submetidas a maior tempo de dessecação), sendo aumentada a virulência progressivamente. Foram feitas 13 injeções, sendo que a última, feita no dia 16 de julho de 1885, já continha material altamente virulento. Segundo Pasteur, essa última injeção continha material “mais virulento do que a do cão das ruas”.
O resultado foi excelente. O pequeno Meister evoluiu bem, não apresentou nenhum sintoma da doença. Foi salvo tanto da mordedura do cachorro raivoso quanto da inoculação do vírus com alta virulência. Meister foi mandado de volta à sua cidade e mantido em observação até outubro, sendo a comunicação com Pasteur feita por meio de cartas. Em 25 de outubro de 1885 Pasteur apresentou os resultados à Academia de Ciências da França.
O sucesso do tratamento teve grande repercussão e o prestígio de Pasteur aumentou muito e o seu método terapêutico para a hidrofobia passou a ser utilizado imediatamente, com sucesso. As doações recebidas para pesquisa também cresceram e em 1888 ele conseguiu fundar o seu famoso instituto.
Joseph Meister, o primeiro ser humano a vencer a raiva, tornou-se uma figura icônica e foi contratado como auxiliar de laboratório do Instituto Pasteur aos 14 anos de idade. Mais tarde tornou-se relações públicas da organização.
Em 1940, quando a França foi invadida por tropas alemãs, Meister cometeu suicídio.
Referências
1. Pasteur, L. Méthode pour prévenir la rage après morsure. Comptes Rendus des Séances de l’Académie des Sciences. comunicação de 25/10/1885.
2. Silva, C S P. Da passagem à atenuação: Jenner e Pasteur e o desenvolvimento dos vírus inoculáveis. Tese de doutorado PUC. Sao Paulo : s.n., 2015.
3. Rappuolli, R. Inner Workings: 1885, the first rabies vaccination in humans. PNAS. 2014, Vol. 34.
4. A, Tarantola. Four Thousand Years of Concepts Relating to Rabies in Animals and Humans, Its Prevention and its Cure. [A. do livro] Dietzschold B. (editores) Rupprecht C. Rabies Symptoms, Diagnosis, Prophylaxis and Treatment. 2. Basel : MDPI, 2010.
5. Smitt, K. Louis Pasteur, the father of immunology? Front. Immunol., 10 April 2012 . 2012.
6. Rosendo, T.G. Louis Pasteur: Um humanista do século XIX. dissertação de mestrado- Universidade Fernando Pessoa. Porto : s.n., 2016.
7. Teixeira, L A. Microbiologia, raiva e Institutos Pasteur no Brasil. [A. do livro] Teixeira LA. Ciência e Saúde na terra dos bandeirantes: a trajetória do Instituto Pasteur de São Paulo. s.l. : Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1995. 180 p. .
Li e reli seu texto, como sempre cheio de história e este com final feliz! Que bom recordar essa historia maravilhosa com tantos detalhes! Obrigada Neto!
Caro Neto, como sempre nos presenteando com mais esta história de nossa medicina. Muito obrigado. Grande abraço.
Meu caro Neto, mais uma vez obrigado por nos oferecer um pouco da história de nossa medicina. Sabemos da importância do Dr Pasteur como cientista e nada melhor do que um pouco de detalhes sobre sua vida. Continue firme com o “xarope de letrinhas”.
Grande abraço
Oi Neto que prazer receber seu contato com esta maravilhosa história da medicina.
Continue e nos brinde com mais histórias.
Um grande abraço extensivo a todos colegas que virem meu comentário.
Saudades muitas de todos.
Olá Neto. Perfeito, como sempre. É um prazer muito grande aprender mais sobre a nossa arte com um grande médico e historiador que ama as duas artes. Abração meu amigo.
Neto, muito obrigado por nos presentear com mais este capítulo da história da medicina, descoberta tão relevante do Professor Pasteur. Grande abraço.
Excelente, Neto! Amo histórias, e não é diferente em relação às histórias da Medicina. Acabei de conhecer o Xarope de Letrinhas e já quero repetir a dose…. Obrigada por me incluir entre os seus leitores. Grande abraço.
Neto, é sempre uma aprendizagem esses textos elucidativos, além do maravilhoso passeio pela história da medicina!!!!
Parabéns!!!
Luís Alfredo
Muito bom meu amigo. Parabéns. Amo ler o xarope de letrinhas.
Que maravilha!!! Só você mesmo para nos proporcionar essa brilhante pintura!!!!
Saber a história da medicina torna a nossa profissão ainda mais bela
Muito legal Neto. Nós ensinando a Medicina por outra visão. Parabéns.
Você é sempre brilhante, meu amigaço! Isso é mesmo a estória da história. Gostei muito também do “novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história”. Muito orgulho de você, menino Neto!
Neto , obrigada por nos presentear com estes fantásticos textos.