Tua Cantiga, uma canção de amor de Chico Buarque e Cristóvão Bastos

Vou começar este texto pelas conclusões: Tua cantiga, a canção que abre o álbum Caravanas de Chico Buarque, é uma canção de amor. Um amor delicado, terno, doce. O amor a uma criança. No caso, o amor do avô pela neta. Pedindo perdão se estiver viajando, vou tentar explicar:
Como sempre aconteceu desde o final dos anos 60, aguardei com ansiedade o lançamento do novo disco (ainda falo disco) de Chico Buarque. Sempre me surpreendi com a beleza e as novidades de cada um desses álbuns. Um novo disco, depois de 7 anos, deveria ter algo diferente, instigante. Quando vi o clipe de Tua Cantiga, entretanto, não me empolguei tanto.
Não posso falar sobre a qualidade da elogiada melodia de Cristóvao Bastos, li que é um tipo de lundu. Só sei que ela é muito, muito bonita, cativante. Aliás, Cristóvão é também o autor da lindíssima melodia de Todo o Sentimento, que considero a mais bela canção da obra de Chico Buarque. A melodia de Tua Cantiga não poderia ser desperdiçada com uma letra comum. E a letra, no primeiro momento, não me impressionou tanto.  Passei a prestar mais atenção nela quando começaram as publicações que acusavam a canção de machista, de datada, de fazer apologia ao adultério. Essa visão reacionária foi provocada principalmente pelos versos:  Largo mulher e filhos / E de joelhos, vou te seguir
Tive certeza de que ali tinha coisa, quando os jornais e blogs noticiaram que o autor tinha se defendido. Essa “defesa” foi uma postagem no Facebook:
“Será que é machismo um homem largar a família para ficar com a amante? – Pelo contrário. Machismo é ficar com a família e a amante. Diálogo entreouvido na fila de um supermercado…”
Claro que era ironia, sarcasmo, trollagem. Chico não entraria numa discussão sem sentido, como nunca tentou explicar sua obra. É possível que, por pura provocação, tenha deixado pistas que ensejam outras interpretações. Por coincidência, ou não, a palavra cantiga segundo o Dicionário da Academia Brasileira de Letras pode ter também o significado de “conversa para enganar”.
            Foi então que li um texto de Guto Leite[1] em que ele identifica várias referências a personagens de histórias infantis clássicas. A chave para interpretar a música estava ali! Por que Chico Buarque havia feito isso? É claro que essas referências estavam saltando aos olhos. Chapeuzinho Vermelho (pela estrada afora), João e Maria (deixar cair o lenço -pedrinhas, no conto-) para ser alcançado), Rainha Má (serás rainha, cruel talvez), Espelho Mágico (dizer outro nome no espelho).  Deve ter outras. Era cristalino! Na obra de Chico existem várias canções inspiradas em motivos da infância.
Fiquei dias com a música na cabeça, querendo saber o que ela dizia. Ouvi várias vezes até me fixar na estrofe:
Silentemente, vou te deitar
Na cama que arrumei
Pisando em plumas
Toda manhã eu te despertarei
Estes versos não tinham nada de erotismo. Exalavam ternura e delicadeza. De repente, vi a imagem de alguém colocando uma criança adormecida na cama e saindo do quarto com cuidado para não acordá-la. Aí tudo ficou claro. 
Era uma canção de amor a uma criança! Do avô para a neta. Corri para a letra: as ações do “eu” da poesia eram sempre no sentido de consolar, proteger, alcançar, atender ao chamado.
Então foi só adaptar essa teoria ao poema: Quando tua garganta apertar é literal, (criança doente, com dor de garganta). Se teu vigia se alvoroçar –Sempre tem alguém vigiando, cuidando de uma criança.
 Os versos: Se as tuas noites não têm mais fim / Se um desalmado te faz chorar remetem a uma criança com medo à noite, acordando de um pesadelo.
  
Na nossa casa
Serás rainha
Serás cruel, talvez
Vais fazer manha
Me aperrear
E eu, sempre mais feliz
Essa estrofe lembra a criança na casa do avô. Vai ser rainha, fazer manha, fazer o que quiser. E o eu da poesia, sempre mais feliz!
E passam a fazer sentido, e ficam perfeitos os versos polêmicos:
Quando teu coração suplicar
Ou quando teu capricho exigir
Largo mulher e filhos
E de joelhos
Vou te seguir
O velho deixando tudo para trás para atender ao chamado e aos caprichos da criança.  De joelhos também é literal. Ajoelhado, para ficar da altura dela.
Mas teu amante sempre serei
mais do hoje fui
Ou estas rimas não escrevi
Nem ninguém nunca amou.
A palavra amante confunde, mas é só tomá-la pelo seu significado principal, segundo o dicionário Aurélio: aquele que ama, afetuoso.
Aqui cabem parênteses para mencionar uma clara citação à Shakespeare nos versos (que também vi no texto do Guto Leite):
“Ou estas rimas não escrevi
Nem ninguém nunca amou.”
Shakespeare termina o seu  Soneto 116 com: “I never writ, nor no man ever loved.”
Citação quase literal. No soneto, o bardo diz que o amor não diminui com o tempo, mas se mantém. Na sua letra, Chico diz que o seu amor é para sempre e será cada vez maior.
A diferença de idade entre avô e neta explica os versos finais, em tom de lamento, mas não choroso:
“E quando o nosso tempo passar
Quando eu não estiver mais aqui
Lembra-te, minha nega
Desta cantiga
Que fiz pra ti.”
Atente-se que no disco participam dois dos netos do compositor. Deve ter muita coisa ainda escondida na letra, como o significado das rimas aliterantes, mas não tenho conhecimento para entender.
O verso final “cantiga que fiz pra ti” e o título “Tua cantiga” não são genéricos como podem parecer, antes denunciam que é uma canção feita para alguém especificamente.  De um avô para a neta. Ou de um pai para uma filha. É uma canção de amor. Simples, terna, doce. Feita no compasso e no tempo da delicadeza. Linda, simplesmente, como todas as canções de amor de Chico Buarque, o poeta maior.
PS: Só criei coragem de escrever este texto depois que minha filha Ana Raquel concordou com a ideia do amor avô/neta e contribuiu com várias observações. Uma ou outra pessoa com quem conversei acharam que eu estava viajando, o que também faz sentido.
Este post foi publicado originalmente no blog Bálsamo Histórica em novembro de 2017

[1] O texto de Guto Leite, que interpreta Tua Cantiga como uma canção de morte, pode ser lido neste link: https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/musica/noticia/2017/08/guto-leite-a-cantiga-de-morte-de-chico-buarque-9878526.html


Tua Cantiga- Chico Buarque- Cristóvão Bastos
Quando te der saudade de mim
Quando tua garganta apertar
Basta dar um suspiro
Que eu vou ligeiro
Te consolar
Se o teu vigia se alvoroçar
E, estrada afora, te conduzir
Basta soprar meu nome
Com teu perfume
Pra me atrair
Se as tuas noites não têm mais fim
Se um desalmado te faz chorar
Deixa cair um lenço
Que eu te alcanço
Em qualquer lugar
Quando teu coração suplicar
Ou quando teu capricho exigir
Largo mulher e filhos
E de joelhos
Vou te seguir
Na nossa casa
Serás rainha
Serás cruel, talvez
Vais fazer manha
Me aperrear
E eu, sempre mais feliz
Silentemente
Vou te deitar
Na cama que arrumei
Pisando em plumas
Toda manhã
Eu te despertarei
Quando te der saudade de mim
Quando tua garganta apertar
Basta dar um suspiro
Que eu vou ligeiro
Te consolar
Se o teu vigia se alvoroçar
E, estrada afora, te conduzir
Basta soprar meu nome
Com teu perfume
Pra me atrair
Entre suspiros pode outro nome
Dos lábios te escapar
Terei ciúme
Até de mim
No espelho, a te abraçar
Mas teu amante
Sempre serei
Mais do que hoje sou
Ou estas rimas
Não escrevi
Nem ninguém nunca amou
Se as tuas noites não têm mais fim
Se um desalmado te faz chorar
Deixa cair um lenço
Que eu te alcanço
Em qualquer lugar
E quando o nosso tempo passar
Quando eu não estiver mais aqui
Lembra-te, minha nega
Desta cantiga
Que fiz pra ti

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

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