Reparando o coração ferido

No final do século XIX, os procedimentos cirúrgicos eram ainda precários, mas vinham progredindo bastante com a evolução do conhecimento médico, a consolidação da teoria microbiana e o advento da anestesia. Não havia, entretanto, qualquer possibilidade de cirurgias no coração, então considerado um órgão inviolável. A frase de Bilroth, influente cirurgião, resumia o pensamento da época: “O cirurgião que tentar a sutura de um ferimento no coração, perderá o respeito de seus colegas”. Em 1896 no livro Surgery of the chest, Paget dizia que a cirurgia do coração já tinha chegado ao seu limite, com os ensaios em animais.

Rehn
Ludwig Rehn- 1849-1930

As coisas começaram a mudar nesse mesmo ano de 1896. Em 09 de setembro, Ludwig Rehn, o chefe da cirurgia do Hospital Provincial de Frankfurt estava chegando de uma viagem e foi chamado para examinar o paciente Wilhelm Justus, que havia sido admitido no hospital dois dias antes, depois de ter levado uma facada no peito, durante um assalto.  O paciente estava cianótico, dispneico, pulso fraco e rápido. O diagnóstico de hemotórax tinha sido estabelecido, mas não se sabia de onde vinha o sangramento. Lembremos que não havia qualquer outro recurso diagnóstico que não fosse a semiologia.

O cirurgião percebe que o paciente está agonizante, o quadro é desesperador e decide pela cirurgia. Nas suas palavras: “Não havia outra opção para mim, com o paciente deitado na minha frente e sangrando até a morte. (…) Embora eu quisesse ter tido tempo para avaliar cuidadosamente o problema, ele exigia uma solução imediata”.

Decidida a cirurgia, o acesso ao coração foi feito por uma incisão de 14 cm no 4º espaço intercostal esquerdo e exploração digital do pericárdio. Tudo era novidade para o experiente cirurgião. Rehn descreve assim:

A visão do coração batendo no saco pericárdico aberto era extraordinária. Sangue e coágulos continuavam a aparecer mas não impediram a identificação de um ferimento aberto de 1,5 cm no ventrículo direito. O sangue saía do coração, mais durante a sístole. Pressão digital controlava o sangramento, mas meu dedo tendia a escorregar com os batimentos rápidos. As contrações cardíacas não eram afetadas pelo meu toque. (…) O movimento do coração tornado possível pela liberação do pericárdio era impressionante. Durante a sístole, o musculo cardíaco era duro como pedra (…) Uma fina agulha gastrintestinal com seda foi empregada. Começando na extremidade esquerda da ferida, eu passei a agulha rapidamente durante a fase de diastólica, que era o único momento que o ventrículo direito era exposto. O coração permanecia um instante em diástole. Nas sucessivas diástoles, a sutura era feita. A primeira sutura restringiu o fluxo de sangue. A realização da segunda sutura foi grandemente facilitada pela tração da primeira. Foi inquietante ver a pausa do coração durante a diástole, com cada passada da agulha. Após a terceira sutura, o sangramento parou completamente. O coração deu uma batida trabalhada e depois prosseguiu com contrações vigorosas, enquanto nós soltávamos um suspiro de alívio. O primeiro assistente notou que o pulso parecia mais forte. A cavidade pleural foi irrigada com solução salina para remover todo o coágulo possível. Drenagem do pericárdio foi feita com gaze embebida em iodofórmio. A costela foi baixada e os tecidos moles foram reaproximados.”

Pode-se imaginar as dificuldades do pós-operatório, com a inexistência de antibióticos e recursos laboratoriais. No dia seguinte foi feita drenagem pleural de liquido sanguinolento e no dia 19, com febre alta, foi feita nova drenagem pleural com muito material purulento e a partir da drenagem do empiema, houve melhora progressiva do quadro. Seis meses depois Rehn anunciava recuperação de Wilhem Justus à Sociedade Alemã de Cirurgia.

O cirurgião alemão disse que não tinha nenhuma experiência em intervenções cardíacas e agiu seguindo os princípios gerais da cirurgia. O pioneirismo de Rehn mostrou a viabilidade das cirurgias cardíacas. Abriu caminhos, mudou conceitos. Seu sucesso quebrou o paradigma da inviolabilidade do coração, que vinha desde Hipócrates.  

Referências

1. Blatchford, JW. Ludwig Rehn: the first successful cardiorrhaphy. Ann. Thorac Surg. 1985, Vol. 39, 5.
2. Asensio, JA , Petrone,P, Pereira, B e outros.Penetrating Cardiac Injuries: A Historic Perspective and Fascinating Trip Through Time. Journal of the American College of Surgeons. 2009, Vol. 208, 3.
3. R, Zalaquett. 1896-1996: a century of cardiac surgery. Ludwig Rehn and the first heart surgery]. Rev Med Chil. 1996 Oct;124(10):1281-4.
4. H, Ellis. Suture of a stab wound of the heart. J Perioper Pract. 2015 Jul-Aug;25(7-8):144.
5. Aris, A. One Hundred Years of Cardiac Surgery. Ann Thorac Surg 1996;62:636 –7.

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

Este post tem 2 comentários

  1. SONIA PIRES

    Essa história é muito emocionante, Neto! Jamais esquecerei de Ludwig Rehn, Wilhelm Justus e a data de 9/10/1896.

  2. Léo

    Grande Neto , sofridas saudaçoes tricolores. Quanta satisfaçao em saber que voltou a se lembrar de mim! Abraços saudosos Sérgio

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