O texto a seguir é de Walter Toledo Amaral, gente da melhor qualidade, ginecologista dos bons e meu amigo de longa data. Joga no time do bem. O texto fez parte da pesquisa para a sua dissertação de mestrado.
A pré-eclâmpsia é uma enfermidade do endotélio materno de origem placentária. Ela é específica da espécie humana e da gestação. É o resultado final de uma complexa interação molecular entre a decídua uterina e as células trofoblásticas. Não existe PE espontânea em animais, o que dificulta a compreensão de sua fisiopatologia. Os argumentos a favor da origem placentária são a ocorrência exclusiva durante a gravidez, seu desaparecimento após a retirada da placenta, sua possível ocorrência na ausência de embrião (gestação molar) e finalmente, a ausência de conexão com o ambiente uterino, já que ela pode ocorrer em casos de prenhez abdominal. No Brasil, a Síndrome Hipertensiva Gestacional é a causa de morte materna mais frequente. Artigo publicado no Lancet em maio de 2011 reporta a levantamento realizado em 2007 no qual a hipertensão arterial é responsável por 23% das mortes maternas diretas no Brasil.
Apesar da nossa dificuldade em identificar a etiologia exata da Pré Eclampsia, várias contribuições através da história contribuíram para o nosso conhecimento atual da patologia.
Na Grécia antiga Hipocrátes desenvolveu a teoria dos quatro humores para justificar as enfermidades. Acreditava que o corpo era composto por quatro humores (catarro, sangue, bílis amarela e bílis negra) e que a saúde dependia do equilíbrio destes.
Entre o final do século V e o início do século IV AC, os Hipocráticos defendiam a teoria “úmida” e “seca” para explicar a vulnerabilidade da fisiologia feminina. As mulheres eram consideradas úmidas enquanto os homens secos. As mulheres por serem porosas e suaves corriam maior risco de umidade excessiva o que facilitava o surgimento de doenças. Além disto, muitas doenças foram atribuídas ao “Útero errante”. Esta teoria afirmava que o útero seria capaz de abandonar sua sede na pélvis e viajar por qualquer lugar no organismo feminino em busca de prazer (Platão).
Hipócrates acreditava que uma mulher precisava estar grávida (desvio do sangue para o feto, diminuindo a umidade); ou amamentando (desvio do sangue para formação de leite); ou menstruada (eliminação direta do sangue). Neste período a PE não foi formalmente reconhecida, mas algumas descrições já estabeleciam que cefaléia acompanhada de convulsões durante a gestação eram consideradas como mal prognóstico (Hipócrates, 400 BC/1950).
Durante a Idade Média o progresso médico e científico chegou a um impasse. Entre 400 e 700 dC o Cristianismo se opôs ao progresso da Ciência. A dissecção humana foi proibida. As Escolas Médicas de Athenas e Alexandria foram fechadas por Justiniano, Imperador Bizantino (Século 6).
Neste período, historiadores como Oribasius, Aécio de Amida e Paulo de Egina apenas compilam e reescrevem obras médicas de seus antecessores.
Entre 700 e 1200 dC a influência do cristianismo e de Bizâncio declina coincidindo com o surgimento da influência Árabe e dos Salernitanos (Salerno, Itália). A primeira Escola Médica Européia é fundada em Salerno (Itália) no século IX.
Durante o Renascimento ocorre uma aceleração no conhecimento médico resultante da maior liberdade proporcionada pela Igreja (em 1537 o Papa Clemente VIII concede permissão para ensinar anatomia através da dissecção humana), do rearranjo dos governos, da geografia e da descoberta da impressão.
Com esta liberdade recem adquirida, anatomistas e artistas: Jacopo Berengario da Capri (1460/1530), Nicolaus Massa (1499/1569), Leonardo Da Vinci (1452/1519), Andreas Vesalius (1514/1564) e Fallopius (1523/1562) foram fundamentais para descrever de forma clara e precisa o Sistema Reprodutor feminino. Falópio foi o primeiro a descrever as Trompas e os Ovários. Foi quem nomeou a Placenta e referiu que ela só era encontrada durante a gravidez. No século 17 o francês François Mauriceau foi um dos responsáveis por estabelecer a Obstetrícia como especialidade e, foi o primeiro a descrever sistematicamente a Eclampsia e definir que as primigestas tinham um risco maior de terem convulsões quando comparadas com as multíparas. Atribuiu as causas à supressão dos loquios e a morte fetal intra útero (um feto morto libera humores fétidos e cadavéricos no útero o que predispõe a mulher a ter convulsões).
O tratamento da doença durante a Idade Média foi grandemente influenciado por crenças cristãs, sendo prescritos: encantos, amuletos, cura pela fé, milagres e orações. Com a diminuição da influência cristã, remédios semelhantes aos usados na antiguidade voltaram ao “bulário” da época. Mauriceau, por exemplo, indicava o uso de flebotomia 2 a 3x por dia para diminuir o congestionamento cerebral e evitar as convulsões.
Somente em 1619 a palavra Eclampsia surgiu em um Tratado de Ginecologia (Varandaeus). No século XVIII Boissier de Sauvages distinguiu eclampsia da epilepsia. Ele acreditava que as convulsões eram resultantes da tentativa do organismo eliminar qualquer elemento mórbido (feto?). O Dr. Thomas Denman (1821) em seu trabalho intitulado “Introdução para a Prática da Obstetrícia” atribuiu as convulsões a certos costumes associados às grandes cidades e vilas, porém considerou um maior risco para àquelas que provinham do útero. Dizia que em um útero ampliado pela gravidez a pressão provocada sobre os vasos sanquíneos poderia levar a regurgitação do sangue para o cérebro resultando em sobrecarga e convulsões. Willian Tyler Smith em seu trabalho (1849) “Parto e os Princípios e Práticas da Obstetrícia” acreditava que a gravidez gerava um estado de plenitude com incremento da circulação e que durante a segunda etapa do trabalho de parto haveria um aumento de pressão desencadeando as crises convulsivas. Em relação as convulsões puerperais sugeria que qualquer estimulo mecânico ou emocional aplicado em excesso para o centro da coluna vertebral, sangria, variações atmosféricas, irritação do útero (?) e elementos tóxicos poderiam desencadeá-las. Estabelecia que a preservação da saúde durante a gestação dependia da eliminação constante de resíduos (secreções intestinais e renais) e restos dos sistemas maternos e fetais. Quando isto não ocorria resultava em “Toxemia”, com intoxicação dos centros nervosos pelos elementos tóxicos acumulados.
Com o reconhecimento da Eclampsia viu-se que esta era aguda enquanto epilepsia tinha uma natureza crônica, porém ainda acreditava-se não estar limitada apenas à gravidez. Somente no final do século XVIII e início do XIX, com o refinamento da classificação estabeleceu-se a relação com os sinais típicos da patologia. Em 1797, Demanet observou uma relação clara entre edema e eclampsia. John Lever em 1843 descobriu Albumina na urina de mulheres eclâmpticas Dr. Robert Johns descreveu os sintomas premonitórios durante os meses finais (dor de cabeça, perda temporária da visão, epigastralgia, edema de membros e face) e o quadro puerperal. Em 1897, Vaquez e Nobécourt estabeleceram pela primeira vez a relação da hipertensão com a eclampsia. Como resultado destes achados, o conceito de Pré-eclampsia foi estabelecido. Estavam agora conscientes de que a presença de edema, proteinúria, cefaléia em gestantes era motivo para vigilância quanto à possibilidade de convulsões.
No século XX muitos pesquisadores buscaram estabelecer a etilogia da PE, com progressos e muitos retrocessos. Na década de 60 estabeleceu-se a origem placentária da patologia associada a não invasão adequada das artérias espiraladas pelas células trofoblásticas.Arraste com a tecla Shift para reorganizar.
Referências
1. Burton, J. L. (Ed.). (2005) ‘Six hundred miseries’: The seventeenth century womb. In Riviere, L. (1678). Book 15 of ‘The Practice of Physick’ (N.Culpeper,Trans.). London, U.K. (Original work published 1655).
2. Chesley, L. C. (1984). History and epidemiology of preeclampsia-eclampsia. Clinical Obstetrics and Gynecology, 27(4), 801-820.
3. Cianfrani,T. (1960). A short history of obstetrics and gynecology. Spring-eld, IL: Thomas Books.
4. Demand, N. (1994). Birth, death, and motherhood in classical Greece. Baltimore, MD: The John Hopkins University Press.
5. Graham, H. (1951). Eternal eve: The history of gynecology & obstetrics.Garden City, NY: Doubleday & Company Inc.
6. Green, M. H. (1985). The transmission of ancient theories of female physiology and disease through the early Middle Ages (Unpublished doctoral dissertation). Princeton University, Princeton,NJ.
7. Hibbard, B. M. (1988). Principles of obstetrics. Boston: Butterworths.
8. Hippocrates. (1950). The medical works of Hippocrates ((J. Chadwick &W. N. Mann, Trans.). Oxford, U.K.: Blackwell Scienti¢c Publications.(Original work published 5th century B.C.).
9. Johns, R. (1843). Observations of puerperal convulsions. Dublin Journal of Medical Science, 24(1),101-115.
10. Mauriceau, F. (1710). The diseases of women with child, and in childbed: As also, the best means of helping them in natural and unnatural labours . . . To which is prefix’d an exact description of the parts of generation in women . . . The fourth edition corrected, and augmented with several new figures (H. Chamberlen, Trans.). London, U.K. (Original work published 1668). Retrieved from Link
11. Trotula of Salerno. (1940). The diseases of women (E. Mason-Hohl,Trans.). Los Angeles, California: Ward Ritchie Press. (Original work published 1544).
MUITO BOM!!!
Gente,
Tô muito orgulhosa desses meus amigos!!
Para uma ex-pretensa-médica, afinal eu queria fazer medicina quando a Biologia me capturou, sinto-me com em sala de aula. Desta vez, no entanto, aprendo com e pelo amor: amor de quem exerce ou exerceu a prática; amor de quem juntou paixões – a pratica da ciência,o conhecimento da história e a habilidade e o prazer de ensinar.
Parabéns Dr. Neto e Dr. Walter!
Sou fã de vocês!
Excelente e instrutivo o artigo. É interessante notar através da História,mais uma vez, como a Igreja tentou "atravancar" o progresso da ciência!
Luís Alfredo