O Toque dos Reis – A cura das escrófulas

O longo reinado de Luis XIV, de 1643 a 1715, foi o maior de toda a história da França e é recheado de símbolos, representações e mitos. Sua figura é um símbolo do absolutismo das monarquias europeias do Antigo Regime, tanto que é atribuída a ele a emblemática frase: “L´Etat c’est moi” (“O Estado sou eu”), embora exista polêmica na historiografia sobre se ele teria mesmo dito isso.

Luis XIV da França. O Rei Sol
Luis XIV da França. O Rei Sol

Sua imagem é associada à grandiosidade, ao poder humano e divino. Neste post nos interessa justamente essa aura de sacralidade do rei, sua taumaturgia, ou seja a capacidade de operar milagres, evidenciada pelo toque das escrófulas. Desde a Idade Média, pelo menos desde o século XII, os monarcas franceses e ingleses tinham associada à sua imagem a capacidade de operar curas dos escrofulosos. Essa atuação atingiu seu auge no século XVII, justamente com Luis XIV na França.

O imaginário popular via como milagroso o toque régio, fruto de um poder sacralizado por uma escolha divina. Isso é bem explicado pelo historiador alemão Ernst Kantorowicz que desenvolveu o conceito de “os dois corpos do rei”, que era humano pela sua natureza e divino por concessão da graça de Deus. A relação do rei com Deus era ainda reforçada e consagrada pela unção com o óleo da Santa Âmbula, um bálsamo com o qual eram ungidos os reis franceses. A lenda, originada no século IX reza que a Santa Âmbula teria sido trazida pelo Espírito Santo para a unção do rei Clovis no século V, o primeiro rei cristão dos francos. Atente-se que a mentalidade do homem medieval tinha essa crença bem internalizada e entendia bem que além do direito divino para governar os homens, o rei havia recebido o dom da taumaturgia, podia operar milagres. No seu clássico livro Os reis taumaturgos, de 1924 que marca o início de uma nova forma de fazer a história, particularmente o da história das mentalidades, Marc Bloch diz que “o milagre régio apresenta-se sobretudo como a expressão de certo conceito de poder político supremo”.

Luis XIV curando a escrófula - Jean Jouvenet -1690
Luis XIV curando a escrófula – Jean Jouvenet- 1690

Os doentes de escrófulas acorriam em grande multidão às cerimônias do toque real, realizadas em ocasiões especiais, em datas santificadas, num rito em que o rei tocava os doentes um a um, fazendo em seguida o sinal da cruz. A aceitação popular do poder real era clara. Os insucessos eram por culpa do doente, não da ineficiência do toque. Quem não fosse curado voltava com mais fé na próxima cerimônia.  

O primeiro documento histórico registrando o toque real milagroso, remonta ao século XII, na França quando a população constatava esse poder de cura das escrófulas no rei Luis VI e a ele acorriam multidões em busca do milagre real. Marc Bloch diz que a tradição do toque teria começado com o Filipe, o pai de Luis VI. O poder de cura dos reis franceses já teria sido observado em Roberto II, o Pio, no século XI. A cerimônia do toque milagroso foi sendo destinada especificamente para a cura das escrófulas. Na França a escrófula era conhecida como mal du roi e na Inglaterra como King´s evil. Na Inglaterra, o poder taumatúrgico real é registrado a partir de Eduardo, o Confessor e Henrique II no século XII.

Entalhe de Frederick Hendrick van Hove sec XVII
Entalhe de Frederick Hendrick van Hove sec XVII

Hoje, a medicina chama de escrófulas a linfadenite tuberculosa especialmente quando estão acometidos os linfonodos da região do pescoço. As escrófulas eram condição frequente na Idade Média. É claro que, numa época em que o diagnóstico etiológico era impossível, numerosas condições patológicas que provocam aumento dos gânglios linfáticos eram chamadas de escrófulas e não só as linfadenites específicas por tuberculose. Embora não haja como determinar a prevalência da tuberculose ganglionar na Idade Média, os registros históricos apontam que devia ser alto o número de doentes. Os registros de óbitos, com as limitações de diagnóstico da época, mostram que cerca de 20% das mortes na cidade de Londres no século XVII eram devidas à consumpção, nome pelo qual era chamada a doença que depois ficou conhecida como tuberculose. 

Referências

1. Bloch, Marc. Los reyes taumaturgos. Mexico : FCE, 2006. tradução de Lara, M e Aguillar, JCR.
2. Kantorowicz, EH. Os dois corpos do rei. São Paulo : Companhia das Letras, 1998.
3. RUBIM, SRF e Oliveira, T. Toque das escrófulas: símbolo do caráter divino do poder régio. [Online] Seminário de Pesquisa do PPE – Universidade Estadual de Maringá, 2009.
4. Manchester, K. Tuberculosis and leprosy in antiquity: an interpretation. Medical History. 28: 162-173, 1984.
5. Rosemberg, J. Tuberculose – Aspectos históricos, realidades, seu romantismo e transculturação. Bol. Pneumol. Sanit. v.7 n.2 Rio de Janeiro pp5-29. 1999.

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

Este post tem 2 comentários

  1. Branco

    Sempre interessante seus textos, trazem boas informações para nós. Abraço.

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