O cheiro da folha

O cheiro da folha

Ela corria pelo roçado que o pai tinha feito muito antes dela nascer. Pai veio fugindo dos homens maus que mataram seus avós. Cresceu andando encaixada nas ancas da mãe, índia que o pai conheceu e botou dentro do barraco, e foram vivendo.

Ouvia da mãe a mesma história de homens maus que mataram sua gente, sua tribo. E no vaivém nas ancas da mãe, sempre tirava a folha de planta que a mãe colocava atrás da orelha. Cheirava e colocava de volta a folha dobrada e encaixada na orelha, como a mãe fazia. Aquele perfume era o cheiro da mãe.

E ela ouvia o pai dizendo para mãe que homens maus estavam querendo pegar oroçado deles. A mãe falava para ela que se ouvisse tiros deveria correr para o mato e ficar bem longe.

Quando dormia, pertinho da mãe, sentia o cheiro que a folha grudou no corpo dela. E a mãe era o cheiro, e sentir o cheiro era a presença da mãe.

Num dia qualquer os tiros pipocaram, viu o pai cair e sem pensar correu para o mato, como a cumprir uma memória, um reflexo condicionado. Correndo, passou pela planta, do cheiro da mãe, e levou um ramo. Como a levar a mãe junto dela.

Correu léguas e parecia que o som dos tiros e o grito do pai ainda ecoavam em seus ouvidos.

Caiu exausta na beira de um riacho e ali adormeceu, como se vivesse um transe. Acordou já era dia claro, e a primeira coisa foi enterrar o talo do ramo que trazia nas mãos. Ali cresceu o ramo, que se tornou árvore, assim como ela se tornou mulher.

Construiu com suas mãos o barraco em que viveu e envelheceu, isolada do mundo. Fez seu roçado e plantou o que comia. Tinha os mesmos hábitos herdados dos pais. E os mesmos medos.

No mundo civilizado, de que ela nem tinha notícia, corria uma epidemia que matava mais gente que os homens maus do sertão. Nunca abriram tantas vagas nas casas de idosos, aquelas feito granjas, onde idosos comem com horários marcados a ração determinada, e dormem quando desligam a luzes.

Antes da epidemia a fila de espera era grande. As famílias comemoravam a abertura de uma vaga, afinal a ida do idoso desocuparia o quarto, para o adolescente da casa ter privacidade com a namorada. Sem saberem que a vaga surgiu, não porque levaram o idoso para casa, mas porque foi enterrado. E a perda da aposentadoria da avó que morreu impediu o neto de ir para a Disney, e ele blasfemou: “Poxa! A vó tinha que morrer justo agora?”

Era uma corrida contra o tempo, todos os supercomputadores e todos os cientistas buscavam um tratamento para evitar tantas mortes. Cruzavam informações e modelavam moléculas, até surgir uma substância que, na teoria, mostrava ser infalível. Tão complexa era a molécula que, apesar de toda tecnologia, teriam que recorrer à natureza.

Sem saberem onde achar, buscaram o conhecimento do velho cientista que viveu a vida andando pelo mato, pesquisando doenças de indígenas e pessoas pobres. Aprendeu a reconhecer plantas e a cultura dos povos da floresta.

Disseram o que buscavam, e o velho pesquisador, com os dedos encarquilhados folheou uma caderneta de anotação, tirou uma folha seca que exalou um perfume, aquele mesmo da velha índia. “A planta é esta”, e deu as coordenadas da única região em que ela existia.

Saíram em expedição, mas ao chegarem encontraram uma imensa plantação de soja, pulverizada de avião e colhida com colheitadeiras guiadas por satélite. Nenhum sinal da planta nativa.

Desolados, dirigiram seus veículos por estradas de chão batido, e dias depois pararam ao lado de um barraco, à beira de um riacho, lugar longínquo e isolado. A mulher velha, ao ver os homens descerem, falando aquela língua dos homens maus, se escondeu no mato. Mas deixou o cheiro da planta, que era o cheiro dela e da mãe. E o cheiro delas perfumou o mundo, dando vida às pessoas, que comemoraram e se embebedaram. A empresa farmacêutica que patenteou a fórmula fez subir milhares de pontos a bolsa de valores de NY. E o medicamento, formulado com o cheiro da índia velha, tem um nome inglês.


Em homenagem a todos os mortos incógnitos e a todos os pesquisadores e povos das florestas.  

Rui Tavares

Médico pediatra e escritor. Autor do livro Consertador de Meninos.

Este post tem 5 comentários

  1. Unknown

    Pois é Meu Grande amigão, Rui. Creio que Você, aos 67, ainda hoje muito jovem, escreveu esta belíssima obra sem saber que a Sua terra Natal, Penápolis-SP, antes de os brancos aportarem por lá, era Terra indígena, por excelência. Os brancos chegaram e dizimaram a todos. Reconheço aqui que, com esse belo conto, se pecado existiu para com os índios, hoje Você resgata e manda para as cucuias grande pedaço daquele pecado. Parabéns, Taquinho.

  2. Dora

    Como já lhe disse meu irmão, você registra o que sente na alma e no coração. Seus escritos sempre verdadeiros e emocionantes.Parabéns!

  3. Unknown

    Texto emocionante em um momento mais do que pertinente!
    Parabéns!!!

    1. Anônimo

      Escrito com sensibilidade, conhecimento e arte. Parabéns!!

  4. Ari

    Texto primoroso e altamente reflexivo. O autor demonstra sensibilidade invejável nessa narrativa dinâmica e de fácil assimilação. Um texto coeso em que a síntese enseja voos imaginários ao leitor atento.

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