José Marqueiz e Bálsamo

José Marqueiz




Lurdinha Geraldes, minha irmã, me enviou um link de uma página na Internet com uma crônica de José Marqueiz, na qual ele fala com nostalgia e carinho de Bálsamo, cidade onde viveu na sua infância. Ali, fico sabendo que o autor é um jornalista conceituado, que ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo de 1973, o prêmio mais importante do jornalismo brasileiro, com uma reportagem publicada no Estadão, denominada Expedição de contactação dos índios Kranhacãrore, os “indios gigantes”, com base na expedição  que participou ao lado dos irmãos Villas Boas.
Logo abaixo está a transcrição de trechos da crônica citada, que faz parte de uma série de textos escritos por Marqueiz chamada de Memória Terminal. José Marqueiz faleceu em 2008. Memória Terminal foi escrita quando ele já tinha o diagnóstico da doença que seria a causa da sua morte. 



“Apesar de pertencer a uma família pobre, posso dizer que levei uma infância de rico. Nasci em Santo André numa fria madrugada de junho de 1948 e, dois meses após, fui no colo de minha mãe para Bálsamo, para onde minha família passou a morar. As ruas ainda eram de terra. As casas térreas, com amplos quintais, todos com árvores frutíferas. As residências dos meus avós eram as preferidas. A dos meus avós maternos possuía mangueiras com os mais diversos tipos de manga – a que eu mais apreciava era a Bourbon. Havia, ainda, rente às cercas de arame farpado no quintal, pés de abacaxi, que eu saboreava ali mesmo quando eles amadureciam. A dos meus avós maternos era preferida por causa de suas jabuticabeiras, das pequenas às grandes. Doces como mel, eu as saboreava nos próprios pés, diante do sorriso maroto do meu avô Angelim, um tipo pequeno e simpático. Nas outras casas, também, nada era proibido. Por isso, eu, sempre quando tinha vontade, invadia os quintais dessas casas e pegava minha fruta preferida – laranja, caju, melancia, dependendo da época. As mangueiras predominavam na maioria dos quintais. 

Antes de completar seis anos de idade, ingressei na escola municipal, denominada Modesto José Moreira. Lá fiz o primário e, no mesmo edifício onde funcionava a escola, tinha também o ginásio, onde cursei até o segundo ano – foi quando minha família transferiu-se novamente para Santo André. Em Bálsamo, além de estudar, cheguei a trabalhar como bóia-fria catando algodão e, depois, amendoim. Depois, passei a visitar os sítios dos arredores da cidade com um carrinho puxado à mão, arrecadando garrafas que, posteriormente, vendia no comércio da cidade. Minha última profissão em Bálsamo foi a de engraxate. Acredito que fui um dos primeiros a implantar o atendimento de engraxate em domicílio. Enquanto os demais engraxates ficavam na praça central ou andando pelas ruas à cata de cliente, eu visitava as casas, no horário marcado, e engraxava os sapatos de toda a família. Um negócio mais garantido, que foi copiado posteriormente pelos demais colegas de profissão. (…)


(…)Em Bálsamo é que tomei gosto pela leitura. Meu pai era assinante da revista Cruzeiro, já extinta, e da Readers Digest e, nas horas de folga, eu ficava lendo em sua barbearia. Na Cruzeiro, não deixava de apreciar a última página, com a crônica de Rachel de Queiróz. Ambas, proporcionam boas leituras, bom passatempo, principalmente para uma criança que começava a descobrir o mundo exterior. (…)

(…)Em Bálsamo, fiz muita amizade e poucos amigos. Dois deles: Ismael e Tico. Ismael mudou-se de lá nos anos seguintes e só o vi, depois, uma vez. Como repórter, viajava com destino ao norte de São Paulo, quando o encontrei num posto de gasolina, pedindo carona para um motorista de caminhão. Conversamos rapidamente e ele se foi. Nunca mais o vi. Tico, cujo nome era Heider José Borduqui, permaneceu meu amigo até a sua morte. Toda vez que eu visitava Bálsamo, ia ao seu encontro. Nos dias em que lá ficava, estávamos sempre juntos, nos bares, bebendo cerveja e conversando sobre a infância passada. Quando o vi pela última vez, apesar de ter parado com as bebidas alcoólicas, aceitei tomar um copo de cerveja com ele. Brindamos a nossa saúde. Ele morreu no ano seguinte.

M
Marqueiz no centro e os irmãos Luis, João Pedro, Gaita e Madalena


De Bálsamo, tenho boas lembranças. Nos finais de ano, quando tudo dá certo, revisito a cidade. Está muito modificada. As ruas pavimentadas, o número de carros aumentou de maneira extraordinária. Não é mais nem sombra do que foi no passado. Perdeu a sua paz… Assim como eu perdi a minha saúde. Faz tempo que não volto a Bálsamo. Talvez volte um dia. Sinto que, se voltar, será uma visita nostálgica, com ar de despedida. Uma visita de quem vai para se despedir. É o que sinto. É o que o meu coração me faz dizer.”


A leitura desses trechos me transportou novamente àquela Bálsamo da minha infância. Impossível não me lembrar do quintal da casa da farmácia onde morei, onde tudo era enorme na minha lembrança: a amoreira, a mangueira, o pé de romã, o quarador de bucha, o poço de sarilho. Da cerca de arame de onde a gente podia ver o quintal das casas vizinhas, do Artur da Padaria, Julião Martinez, Pereirinha, Aristides Arantes, Nelson Pelissoni, das datas vazias que atravessávamos para cortar o caminho até o campo de futebol. Das conversas com os vizinhos pelas cercas do quintal, da camaradagem. Da parede lateral da farmácia decorada pelas inúmeras marcas do barro das bolas de capotão de nossas brincadeiras. Das guerras de mamona. Do mãos ao ar! De atravessar a rua e brincar no “coreto” do Jardim (chamávamos de coreto o área central da praça, de terra batida, circundado por uma muretinha de meio metro de altura. O coreto mesmo já não existia). Brincar de pião e de bolinha de vidro. Havia o tempo do pião e o tempo da bolinha de vidro. Não era bolinha de gude, era bolinha de vidro que falávamos.  Uma vez eu ardia em febre e meu pai me trouxe um saco com mil bolinhas, compradas numa das lojas vizinhas, talvez na do Lucio Vacari, talvez na do Alcides Féboli. Mil bolinhas! Contei todas! Sarei! Jogar “à brinca” ou “à ganha”. Biroca ou triângulo. Ficar com calo nas juntas dos dedos da mão. Todo mundo descalço, cascão de terra vermelha nos pés. Quem viveu aquele tempo sabe o que é isso. O “coreto” ficava cheio de moleques. Virava febre. Isso tudo está muito vivo na minha cabeça. Parece que estou vendo o Marqueiz ali no meio da molecada no Jardim, sendo um deles. Junto com o Tico e o Ismael. Vou agradecer a ele por me fazer lembrar disso tudo. 
Não sei se isso é história ou saudade. Não importa: é bom!
  —–
Não conheci José Marqueiz, não me lembrava dele. Lendo suas crônicas, fiquei seu amigo.  Pelos depoimentos que li no Memória Terminal, fica claro que ele era um homem de bem e do bem. Seus irmãos Madalena,  Luizinho, João Pedro, Antonia e o Gaita, (os três primeiros, permanecem em Bálsamo) devem se orgulhar do mano laureado. 
Este post é uma homenagem e um agradecimento. 




O texto completo da série Memória Terminal pode ser encontrado no blog de Edward de Souza em:
 http://artigosedwardsouza.blogspot.com.br/2010/04/serie-inedita-escrita-por-jose-marqueiz.html


Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

Este post tem 6 comentários

  1. Neto Geraldes

    Olá Ilca, obrigado. Fiquei emocionado com o Memória Terminal. Eu era criança quando ele saiu de Bálsamo, não me lembro dele, mas me sinto como se ele fosse meu amigo. Tentei falar com você antes, mas não encontrei seu endereço no blog do Edward de Souza e estava ansioso para publicar logo o post.

  2. ilca

    Olá, Neto, recebi seu link da Paulinha, filha da Madalena que está na foto dos irmãos. Linda homenagem vc fez, muito obrigada! E seu blog é ótimo, aproveitei pra dar uma lida nos outros posts. Ilca de Marqueiz.

  3. Zaida

    Eu não lembro das coisas como vcs…Onde eu ESTAVAAAAA?

  4. Lurdinha

    Eu fui também faz tempinho. Está tudo diferente, mas o curral era o mesmo, com o pé de tamarindo no piquete. A casa estava mudada, tinham aterrado o quintal. mesmo assim deu saudade.

  5. Neto Geraldes

    Não é tão mais nova assim. Você se lembra que aquela estrada era quase toda na sombra? Tinha uns 4 ou 5 km. Da última vez que estive aí, tentamos ir lá no sítio, mas não achamos a estrada.

  6. Lurdinha

    Então, Neto. Embora eu seja bem mais nova, também tive o privilégio de viver todas essas "aventuras" na minha infância, das quais tenho muita saudade. Sobre as bolinhas de "vidro", lembro que o pai (sempre criança) as levou em um saquinho de estopa e jogou em cima da cama. Tinha a carambola, a olho de boi? e outras que não lembro o nome. Mas tenho saudades, principalmente das travessuras (matar aula para nadar na cachoeirinha), levar lavagem no sítio Tatu de bicicleta, parar na mina, no meio do caminho, para tomar água da bica. Chegando lá, nos esperava a dona Zélia com os bolinhos de polvilho quentinhos. Depois, voltávamos com limão para vender na cidade.Eu ia junto com você, que sempre foi cuidadoso comigo. Não tinha perigo. Enfim, tinhamos coisas boas para ocupar nosso tempo e um grande pai que sempre nos permitiu e ensinou a ser crinças. Boa, meu irmão, continue escrevendo. A Encarnação Molina tem muitas memórias e ficou emocionada com sua inicitiva. Se você falar com ela, vai colher muito material para novas histórias. Você está em meu coração. Grande beijo, meu irmão

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