Meu pai era farmacêutico na pequena cidade de Bálsamo (SP) em meados do século passado e anualmente ele recebia vários exemplares do Almanaque do Biotônico. Eu gostava muito de ler aquelas revistinhas, que traziam curiosidades, passatempos, previsões astrológicas, anedotas, conselhos aos agricultores, fases da lua e, mais importante, a história do Jeca Tatuzinho.
Nessa história, Jeca Tatu era um caipira molenga, cansado, beberrão, sem ânimo, que produzia muito pouco. Muito pobre, sua família e seus animais eram fracos e passavam necessidades. Certa vez, um médico que passou pelo sítio de Jeca descobriu que, na verdade, ele estava era doente de amarelão e explicou que a doença, a ancilostomíase, é causada por um verme que penetra pela pele. Para provar isso, mostrou ao caboclo, com uma lupa, os “vermes penetrando pelos poros”.
Para se curar, Jeca tinha que tomar a Ankilostomina Fontoura, seis comprimidos pela manhã e mais seis na manhã seguinte, repetidos por duas semanas. E não esquecer de tomar um purgante de sal amargo duas horas depois. [i]O médico aproveitou para dizer que o amarelão não deve ser confundido com a maleita. “Sezão se cura com Maleitosan Fontoura e amarelão se cura com Ankilostomina Fontoura.” O doutor recomendou o uso de botinas “ringideiras”, pois os calçados evitam a penetração dos vermes no organismo.
Curado pela Ankilostomina e fortalecido pelo Biotônico Fontoura, Jeca Tatu se torna um homem trabalhador, bem-disposto, que luta com onça no tapa, prospera e vira um grande fazendeiro, com todas as modernidades. Graças aos remédios do laboratório Fontoura.
O autor do texto foi Monteiro Lobato. Ele havia criado o personagem Jeca Tatu em 1914 no artigo “Uma velha praga” publicado no jornal O Estado de São Paulo, em que apresenta o caboclo como um funesto parasita da terra (…), espécie de homem baldio, seminômade, inadaptável à civilização”, atrasado e preguiçoso. Essa visão depreciativa foi reforçada no conto Urupês, de 1918.
O escritor era amigo do farmacêutico Cândido Fontoura, que havia criado, em 1910, um “fortificante” e estava iniciando a sua industrialização. Na época era comum os farmacêuticos criarem seus próprios remédios. O nome Biotônico teria sido sugestão de Monteiro Lobato, que ofereceu o personagem Jeca Tatuzinho ao farmacêutico, para divulgação dos medicamentos que produzia. Nasceu assim o almanaque, que foi um sucesso estrondoso e um dos maiores fenômenos da publicidade brasileira. A tiragem inicial foi de 50 mil exemplares, que aumentou exponencialmente ao longo do tempo e chegou a ter 100 milhões de almanaques produzidos.
No Jeca Tatuzinho do Almanaque Biotônico, Lobato amenizou a inferioridade que atribuíra ao caipira, ao dizer a causa de sua indolência e preguiça era a doença, e que, uma vez curado, ele poderia ser “tão bom quanto o italiano”. Lobato, no folheto do Biotônico, num discurso cientificista, e incorporando o movimento higienista que floresceu na época, pregava a necessidade do saneamento rural, da utilização da ciência e das técnicas modernas.
A utilização da figura do Jeca Tatu como material pedagógico nas escolas foi intensa. Os professores valiam-se do Almanaque Biotônico para ensinar noções higiênicas e de saneamento aos alunos. Na zona rural (onde o analfabetismo era muito grande) quem sabia ler, lia para os demais. Nesses lugares, o livreto serviu, muitas vezes, como uma espécie de cartilha de alfabetização.
O Biotônico Fontoura foi um fenômeno de vendas, tornou-se uma marca muito forte e continua sendo produzido até hoje. É difícil encontrar alguém nascido antes de 1980 que não tenha tomado o tal fortificante. Misturado com semente de sucupira, ganhou fama como preventivo de infecções de garganta. Com leite condensado e ovo de pata era infalível para abrir os apetites. Numerosas crianças fizeram uso dele, embora na fórmula original o Biotônico contivesse um teor alcoólico de 9,5%. Talvez por isso, chegou a ser exportado em grande quantidade para os Estados Unidos, quando lá estava vigorando a lei seca.
Quando se casou, há mais de 70 anos, o farmacêutico João Geraldes (que saudade!), citado no primeiro parágrafo, fez a promessa (e convenceu a esposa Maria de Lourdes a fazer também) de nunca mais tomarem bebidas alcoólicas. Ele manteve o juramento por toda a vida, todavia, de vez em quando, tomava o Biotônico Fontoura de colher ou até no gargalo, nas refeições. Dizia que era para “enganar o santo”.
Referências:
1. Piccino, E.A. JECA TATUZINHO: UM “CAUSO” MEMORÁVEL DA HISTÓRIA DA PUBLICIDADE BRASILEIRA. [Online] 2018. (www.encontro2018.sp.anpuh.org.
2. Machado, M.O, Rossi, E.R. e Rodrigues, E. PRÁTICAS DE LEITURAS ESCOLARES NOS ANOS 20:Os usos do Almanaque Biotônico Fontoura. Revista HISTEDBR On-line. [Online] Unicamp, 2013. https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/view/8640235/7794.
3. Gomes, M.L. Vendendo saúde! Revisitando os antigos almanaques de farmácia. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. 2006, Vol. 13, 4, pp. 1007-18.
4. Jeca Tatuzinho -História. Monteiro Lobato. [Online] [Citado em: 29 de setembro de 2024.] https://monteirolobato.com/miscelanea/jeca-tatuzinho/jeca-tatuzinho-historia/.
5. Kanikadan, P. Médicos e farmacêuticos na terapia popular: uma trajetória de suas profissões no Estado de São Paulo e na Inglaterra (1815-1930). Tese de Doutorado- Faculdade de Saúde Pública. USP. 1910.
6. Diogo, H.C. Prophylaxia da opilação em Cosmopolis e arredores. Serviço Sanitário do Estado de São Paulo : Typografia Brazil de Rotschild, 1920.
7. Korndorfer, A.P. Jeca Tatu, um ilustre opilado: o movimento sanitarista e o combate à anciolostomíase na obra de Monteiro Lobato (Brasil, décadas de 1910-1920). s.l. : História: Debates e Tendências – v. 18, n. 3, set./dez. 2018, p. 436-448.
8. Nadaf, Y.J. Essas revistinhas que se chamam almanaque. Ecos. 1, 2011, Vol. 10.
Excelente texto Neto. Também faz lembrar minha infância quando morava no interior e ouvia falar muito sobre o “amarelão”.
Legal demais, Neto! Duas coisas que aguardávamos na infância: o almanaque do Biotônico e a revista Seleções. E, logicamente, tomando o Biotônico de vez em quando. Obrigado por mais essa publicação. Abraço.
Obrigado Neto.
Infância na veia para o pessoal de nossa geração.
Maravilhoso texto! É minha infância pura! Além de tomar o tal biotônico Fontoura, aguardava ansiosa pela revistinha que meu pai ia buscar na cidade. Fui criada na roça e me identificava com o tal Jeca tatu! Só não tinha verminose porque meus pais sofreram na infância de tais doenças e era sagrado eu e meu irmão tomar os vermífugos duas vezes ao ano conforme recomendação da revistinha! Obrigada Neto!
Muito bom Neto!
Mto legal!