Fazendo uma pequena criatura de Deus, no pensamento de Ambroise Paré, afamado cirurgião do século XVI

Ilustração de Paré
  
Vimos em posts anteriores que Ambroise Paré (1510-1590) foi um famoso cirurgião do século XVI, criador de revolucionárias técnicas de cirurgia, especialmente humanizando o tratamento de feridos de guerra. Esses posts podem ser vistos clicando aqui e aqui.
            Na sua obra De la generaration de l’homme, de 1573, Paré apresenta vários conceitos, alguns revolucionários para o seu tempo, que nos dão uma boa imagem do pensamento “científico” no século XVI, a respeito da concepção humana. Na época prevalecia o entendimento de que o papel da mulher era apenas o de servir como receptáculo, encarregada de fazer germinar e crescer a semente masculina. Paré, no seu livro, apresenta o conceito de que era necessária a união das sementes do homem e da mulher para a concepção, o que se pode considerar uma proto-ideia do processo de fecundação, como o conhecemos hoje.
            
         Para o nosso autor, o homem e a mulher produziam suas próprias sementes, que eram misturadas, unidas e mantidas no ventre feminino. Uma boa semente deveria ser branca, brilhante, pegajosa, cheirando a sabugueiro ou palmeira. Deveria ser agradável para as abelhas e afundar quando colocada na água. Se flutuasse, seria infrutífera. A maior parte das sementes seria formada a partir do cérebro, mas ela precisava receber humores de todas as partes do corpo, senão a criança não teria como ser formada. Note-se que etimologicamente, as palavras esperma (do grego sperma) e sêmen (do latim sêmen) referem-se a semente.
            
          
             Se para Ambroise Paré a mulher também participava da formação da nova criaturinha, a flagrante inferioridade feminina na mentalidade da época impunha que se esclarecesse que a semente masculina tinha qualidade muito melhor, pois os testículos do homem são mais perfeitos para a procriação que os testículos da mulher, mais frios, menores e fracos, e estes enviavam as sementes para o útero (outra proto-ideia de fecundação) por meio dos vasos espermáticos: a veia que passa por cima e a artéria que passa por baixo. Aqui já se pode observar a influência do grande avanço do conhecimento anatômico que ocorreu principalmente a partir da publicação da obra De Humani Corporis Fabrica, de Andrea Vesalius, em 1543.    

            Paré explica que para que ocorra a geração, três coisas são necessárias: a primeira, os excrementos úmidos que vêm na sua maior parte do cérebro, a segunda, as ventosidades cheias de espíritos vitais que vem do coração e que causam distensão e ereção das partes genitais, a terceira é uma luxúria e apetite natural que tem sua fonte no fígado de onde se espalha para as partes genitais. Se uma dessas coisas falta as pessoas são incapazes. É preciso que o homem, por meio do pênis que lhe foi dado, expulse sua semente direto para o útero, com impetuosidade e que a mulher a receba sem demora, pela abertura de uma larga boca no colo do útero, senão a semente esfria e fica infrutífera pois os espíritos vitais serão dissipados e consumidos.
O útero, segundo Paré. B se refere ao testículo feminino

        O pênis fica distendido quando a sua substância nervosa, esponjosa e oca fica inchada e cheia de um espírito ventoso. A boca do útero atrai a semente masculina e também recebe a semente feminina pelos tentáculos dos vasos espermáticos que vem dos seus testículos até as áreas ocas do útero.

          No capítulo IV do seu livro, Paré explica quais coisas precisam ser observadas como necessárias para a geração no momento da cópula:  O homem reunido com a companheira e esposa deve ser afetuoso, acariciar, fazer cócegas, seduzir, manipular as partes secretas, os mamilos, de modo que ela fique estimulada, excitada e inflamada que é quando sua matriz fica agitada e ela tenha vontade de coabitar e fazer uma pequena criatura de Deus e que as duas sementes possam se encontrar juntas. Porque nenhuma mulher está tão pronta para isso como os homens. A maioria das mulheres é lenta e negligente, ele diz. E para avançar nessa tarefa, ela pode ser fomentada com ervas quentes de muscadínia, cozidas em bom vinho, nas partes genitais, e parcialmente colocada no útero um pouco de almíscar e algália no colo ou boca do útero.

Instrumento para infusão de
perfumes no útero.

Quando a esposa perceber o efluxo de sua semente se aproximando pelo prazer, ela precisa advertir seu marido disso, para que no mesmo instante ele possa também lançar sua semente, que pelo concurso ou encontro das sementes, a concepção possa ser feita e assim uma criança ser formada e nascer. E para que isso possa ter maior sucesso, o marido não deve se separar dos abraços de sua esposa para que o ar não entre no útero e corrompa as sementes, antes que elas estejam perfeitamente misturadas. E para ter melhor sucesso, quando o homem se afasta, que ela deixe as pernas ou as coxas cruzadas uma sobre a outra. Paré deixa claro que nesse momento, a mulher deve ficar em repouso e sossego e não deve falar, principalmente censurando, nem tossir.

No tempo em que o livro foi escrito, a função do casamento era apenas a procriação. A Igreja considerava o prazer sexual como pecado, não existia concepção sem pecado, e portanto, deveria ser evitado. A mulher tinha que ter participação totalmente passiva no ato sexual. Com suas teorias, o cirurgião vai de encontro aos ensinamentos da Igreja ao afirmar que a mulher produz sua própria semente, e, mais polêmico ainda, afirmar que o orgasmo feminino era importante para a fecundação, e ainda pelo conteúdo de erotismo presente na sua obra. Levemos em conta que Paré era o primeiro cirurgião e um dos conselheiros do rei, portanto conhecido e respeitado. Seu livro não pode ter sido ignorado, pois teve sucessivas reedições. Além disso, o autor não era católico, mas um protestante, um huguenote. Não se tem notícia, entretanto, de que ele tenha sofrido algum tipo de perseguição ou censura, talvez pela influência que tinha sobre o rei. Em 1572, no episódio que ficou conhecido como O Massacre da Noite de São Bartolomeu, em que, por ordem do rei Carlos IX os huguenotes foram perseguidos e assassinados, Ambroise Paré escapou, escondido no Palácio pela própria família real.

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

Este post tem um comentário

  1. Neto Geraldes

    Obrigado, Heloisa Amaral, pela ajuda na tradução do francês antigo.

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