É fogo, torcida brasileira. Memórias radiofônicas de um torcedor balsamense.

Obtido em www.radioantique.com.br
Tivemos um deste.

Dos meus amigos de Bálsamo da década de 1960 acho que apenas o Waldecir Pelissoni e o Alberto Pinheiro Machado  eram palmeirenses. Os outros ou eram  corinthianos (a maioria) ou são-paulinos  (não muitos, mas sensatos). A geração de santistas começava a aparecer entre os mais novos, como meu primo Zé Antonio, desiludido com o Corinthians do pai e influenciado por Pelé. Mas todos nós tínhamos o nosso time. Alguns mais fanáticos, outros menos. Eu sempre estive no primeiro grupo.
 Naquele tempo, transmissão de futebol pela TV era pouco frequente e em Bálsamo só chegava o sinal da TV Tupi de São Paulo, canal 4. O jeito era recorrer ao rádio e soltar a imaginação. Vi jogos inesquecíveis pelas transmissões de locutores como Fiori Gigliotti, Pedro Luis, Edson Leite, Haroldo Fernandes, Geraldo José de Almeida (que depois virou o principal locutor da TV Globo). Comentaristas também eram famosos como Mário Morais e Mauro Pinheiro.  Locutores e comentaristas eram parte do espetáculo, também eram comentados e reverenciados. Eles faziam um futebol maravilhoso, que nos enchia de orgulho nas vitórias e consolava nas derrotas.
Nos domingos de clássico, havia um ritual que eu tinha que cumprir. Ir à missa logo cedo para ficar de bem com Deus e com a minha mãe e não correr o risco de me sentir culpado em caso de derrota, voltar pra casa, ligar o rádio, acompanhar a parada de sucessos, ouvir “As grandes reprises do futebol”, programa da Rádio Bandeirantes que reprisava um jogo antigo (naquele tempo já tinha jogo antigo!). Depois do almoço ir ao Jardim, encontrar os amigos, falar sobre o jogo, ouvir gozação, retribuir,  fazer o bolo de linha*. Às três e meia já estava sentado ao lado da enorme radio-vitrola lá de casa, que tinha ondas curtas, esperando o prefixo do Scratch do Radio da Bandeirantes, que anunciava o início da “jornada esportiva”. Ouvia o jogo com atenção total, reclamando dos erros e vibrando com as boas jogadas. Se o São Paulo perdia, eu evitava sair depois, se ganhava, o passeio no Jardim era muito bom.

Com alguma frequência eu ouvia a Radio Tupi, da equipe 1040, por causa do locutor Haroldo Fernandes que tinha um ótimo bordão: “ridículo, grotesco e estapafúrdio” quando criticava uma má jogada. Mas o meu narrador preferido era mesmo o Fiori Gigliotti, poético, com seus vários bordões: “abrem-se as cortinas e começa o espetáculo”, “crepúsculo de jogo, torcida brasileira”, “balão subindo, descendo”, “segura com firmeza,” “o tempo passa”, “cabeça na bola aliviando”,  “o moço de tal cidade” e por aí afora. Depois de uma vitória do São Paulo, ouvir o Show de Rádio do Estevan Sangirardi na Rádio Bandeirantes, era de lavar a alma. Cheguei a gravar alguns desses programas num gravador de fita de rolo que meu pai tinha, mas como só tínhamos um rolo, sempre se gravava outra coisa por cima. Além disso, gravava pelo som ambiente e ficava muito ruim. Minha irmã Zaida, mais tarde, gravou vários desses programas em fita cassete.

Na década de 70, já em Brasília, passei a ouvir o Osmar Santos, talvez o melhor de todos os locutores esportivos. Em Brasília era mais complicado, pois para ouvir futebol de São Paulo à tarde, era necessário um rádio que pegasse ondas curtas em 31 metros. À noite dava para pegar em ondas médias. Consegui comprar um rádio de 4 faixas (OM, 25, 31 e 49 ms) para o meu fusquinha e passei muitas tardes de domingo dentro do carro ouvindo futebol. Em 1979, meu amigo Gilberto Schweder me deu de presente um rádio portátil Sony com  11 faixas, que trouxe de Manaus, onde morou, e aí melhorou muito.
Graças ao rádio, tenho muito vivas em minha memória, várias jogadas do Canhoteiro, o maior ponta-esquerda de todos os tempos (se não foi, fica sendo) com seus dribles fantásticos, de deixar os adversários, “estatelados no gramado”, como diziam os narradores. Sua maior vítima era o lateral Idário do Corinthians. Dizia-se que ele era capaz de driblar em cima de um lenço.  Me lembro de suas jogadas espetaculares claramente, embora tenha visto apenas um jogo dele ao vivo (em Rio Preto, contra o América). Nem pela televisão eu vi. A minha lembrança dele é toda radiofônica, talvez por isso seja tão boa. O Canhoteiro tinha fotografia e era artilheiro no meu time de botão. Nos jogos de futebol de mesa com o primo Miculim,  narrávamos as partidas imitando os locutores. O apelido dele vem daí.
Quando o SPFC vinha jogar em Rio Preto eu ficava no pé do meu pai a semana inteira, com medo de ele não me levar. E ia ao jogo com o meu radinho portátilum Pioneer de uns 20 cm de largura por 15 de altura que era alimentado por quatro pilhas médias.
Sempre que podia, eu tentava conferir o que ouvi no rádio com o vídeo-tape que a TV passava no fim da noite. De vez em quando eu deixava de ouvir o jogo para assistir ao video-tape como se fosse direto. A cidade dormia cedo, dava pra ficar sem saber o resultado, embora algum espírito de porco de vez em quando desse um jeito de me contar. Por volta de meia-noite, o canal 4 começava a passar a reprise e eu assistia imaginando que era ao vivo. Só que, não raramente, o sinal da TV caía, ou era desligado, e aqueles desoladores chuviscos e chiados da TV fora do ar me assombravam o resto da noite, junto com o arrependimento de não ter ouvido o jogo.

No YouTube é possível ouvir e recordar Fiori Gigliotti, como nesse jogo Santos 7 x Corinthians 4 em 1964.

http://www.vozesbrasileiras.com.br/html/mp3/g/g-fiori_gigliotti-3.mp3

Aqui um gol narrado por Osmar Santos em 1992, no Japão recolhido do You Tube

Abaixo ouça os locutores Edson Leite e Pedro Luis, na final da copa de 1958 na Suécia, audio obtido do Youtube em http://www.youtube.com/watch?v=jmTTro7WIFU

* O bolo de linha era uma aposta feita por 5 pessoas. Sorteava-se 5 números : 7(ponta-direita), 8 (meia-direita), 9 (centro-avante), 10 (meia-esquerda) e 11 (ponta-esquerda). Ganhava quem tirava o número do jogador que fizesse o primeiro gol do jogo. Quem saía com o 10 em jogo do Santos já se considerava vencedor.

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

Este post tem 8 comentários

  1. Pois é. É nostalgia, mas também é história. O Scratch do Rádio da Bandeirantes tinha uma equipe numerosa. Eles mandavam locutor e comentarista para os jogos mais importantes da rodada, mesmo sendo no mesmo horário do jogo principal, apenas para dar flashes dos joogos. A equipe tinha uma hierarquia de narradores: Fiori Gigliotti, Flávio Araujo, Ennio Rodrigues (era repórter de campo, depois narrador, depois comentarista), Borghi Junior. Os comentaristas: Mauro Pinheiro, Barbosa Filho. Luis Augusto Maltoni era repórter de campo. Eu também gostava do Alexandre Santos.

  2. Robertinho

    Muito legal essas lembranças, Neto. Eu mandava uma carta, todo o início de ano para a Rádio Bandeirantes e recebia duas Tabelinhas do Campeonato Paulista. Era em formato de sanfona e eu ia marcando os resultados nela. Tinha as fotos dos narradores e comentaristas como Ênio Rodrigues, o próprio Fiori, Alexandre Santos que fazia, antes dos jogos, o programa " Grandes Momentos do Futebol" que depois foi para a TV. Belas lembranças, mesmo. Eu ouvia os jogos do Todo Poderoso ( se me permitem…) deitado, com a porta do quarto fechada e com a bandeira do Corinthians sobre meu peito. Isso, acho, ninguém sabia. Só a minha mãe ( que vez por outra tinha que separar a briga com meu irmão, coitado, palmeirense)!

  3. O Chicão é santista, mas gostava mesmo de futebol. Uma vez ele foi comigo a Goiânia assistir a um Goiás e SP (2a2), no campo velho do Goiás, num jogo que não valia quase nada, só pelo prazer de ver futebol. O Luciano foi também.

  4. Gozado é que eu me lembro do Fiori Gigliotti na copa de 66 indignado com a desclassificação. Ele dizia que a culpa era dessa "miserável comissão técnica". Talvez tenha sido o maior xingamento dele, que vivia criando imagens poéticas.

  5. Eu também me lembro do dia. Mas nem dava pra fazer gozação, pois logo vinha um balaio do Pelé em cima do time da gente.

  6. Rui Tavares

    Neto, você conseguiu buscar uma memória guardada há décadas. A voz do Fiori Giglioti narrando faz parte da minha infância. Os nomes dos jogadores das coleções de figurinhas. Mais recente era a volta para Brasília de carona com o Chicão (Francisco Carlos Ribeiro Pintão), fanático por futebol e que sabia tudo de todos os jogadores. Ele mudava as estações do rádio do carro, e enquanto tivesse um falando de futebol, era só o que se ouvia.
    Lindo texto e de excelente memória.
    Abs
    Rui

  7. Osias Canuto

    A magia do rádio é que ele torna o jogo mais modorrento num espetáculo cheio de emoções. Creio, inclusive, que os atuais jogos da nossa seleção só deveriam ser transmitidos pelas ondas do rádio.

  8. Branco

    Esse dia do Santos 7 x 4 Corinthians eu estava em Bálsamo. Triste dia esse.

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