Celso e a medicina romana há 2.000 anos. Sobre os diversos tipos de febre

O texto abaixo, numa tradução livre do inglês, é parte da obra De Medicina, escrita em oito livros por Aulus Cornelius Celsus. Foi obtida do livro Classic descriptions of diseases de Ralph H. Major, que por sua vez a obteve de uma tradução inglesa por James Greive de 1756, do original em latim.

Ela foi escrita há 2000 anos.

Sobre os diversos tipos de febre 

“Prosseguiremos com a cura das febres, que são um tipo de doença que afeta o corpo todo e é extremamente comum. Das febres, uma é a cotidiana, outra é a terçã e uma terceira é a quartã. Às vezes algumas febres retornam depois de um longo período, mas isso raramente ocorre.(…)

As febres quartãs são mais simples. Elas começam comumente com calafrios, então o calor aparece e depois que o paroxismo acaba, o paciente fica bem por dois dias. Então ela retorna no quarto dia.

Das febres terçãs há dois tipos. Um deles começando e terminando como as quartãs, com a diferença que há apenas um dia de intervalo e ela retorna no terceiro. O outro tipo é muito mais grave, que reaparece no terceiro dia, e ocupe 48 horas ou 36 (às vezes menos ou mais) e a febre não cessa totalmente na remissão, mas é apenas mitigada. Este tipo, muitos médicos chamam de semi-terçã.

As febres cotidianas são muitas e diferentes nas suas manifestações. Umas começam com calor, outras com frio, outras com calafrios. Eu chamo de frias quando as extremidades dos membros estão frias, os calafrios quando o corpo todo treme. Novamente, algumas cessam como são seguidas por um intervalo completamente livre de mal estar; em outros a febre diminui um pouco, mas em alguns ela permanece ativa, até que venha novo paroxismo; outros frequentemente melhoram pouco ou nada, mas continuam como começaram. (…)

Atente-se para a riqueza de detalhes da descrição de Celso, que apresenta os paroxismos febris da malária, praticamente da mesma forma como, alicerçados na microbiologia, os conhecemos hoje. Naquele tempo, e aí se vão dois milênios, a existência de microorganismos sequer era suspeitada. As febres terçãs e quartãs eram atribuídas a miasmas, emanações venenosas. O termo malária, a propósito, etimologicamente é proveniente do italiano mala (mau) e ária (ar) ou seja “ar ruim”.

A vida de Aulus Cornelius Celsus não é bem conhecida. Sabe-se que ele nasceu por volta de 25 a.C. na família patrícia dos Cornelius, durante o reinado de Augusto, numa localidade chamada Galia Narbonensis, que fica no que hoje é o sul da França onde se concentravam os Cornelii. Mais tarde viveu em Roma em época não precisada pelos historiadores. Ele é citado algumas vezes nas obras dos enciclopedistas Quintiliano e Plínio, o Velho, que atestam sua atuação em Roma no início do primeiro século da era cristã, possivelmente durante o tempo de Tibério, que reinou entre 14 e 37 d.C.

Plinio - o velho
Plinio – o velho
fonte: Wikipedia
Aulus Cornelius Celsus

A fama e o prestígio de Celso estão relacionados à sua obra De Medicina, que é a única obra dele que chegou até nós. O De Medicina fazia parte de uma grande enciclopédia chamada Artes ou Artibus, que continha também livros sobre agricultura, retórica, jurisprudência, artes militares. Apenas o De Medicina acabou sendo preservado, os outros se perderam. Apesar de no seu compêndio Celso manifestar por diversas vezes sua experiência pessoal, não existe documentação que ateste sua atuação como medicus.

Na Roma antiga, a medicina helenista praticada pelos médicos de formação grega coexistia com as práticas tradicionais já arraigadas na população romana. Celso foi um dos primeiros a “romanizar” a medicina grega, ao sistematizar e reunir numa grande obra o conhecimento que os médicos helenistas haviam trazido à Roma. Escreveu em latim, em estilo próprio e elegante, compilando o conhecimento então existente. Roma passa a ter como “sua” a medicina helenista. Nesse processo de “romanização”, foi significativa a participação dos enciclopedistas que procuraram organizar em tratados o conhecimento disponível em ciências naturais e medicina e Celso foi provavelmente o mais importante deles, no campo da medicina.

Referências

1. Alvarado, Carlos Alberto. Malária. [A. do livro] Ricardo Veronesi. Doenças infecciosas e parasitárias. Rio de Janeiro : Guanabara Koogan S/A, 1972, pp. 667-693.
2. Oliveira, Alfredo R. M. e Szczerbowski, Daiane. Quinina: 470 anos de história, controvérsias e desenvolvimento. Química Nova. [Online] 2009. [Citado em: 16 de 06 de 2010.]
3. Encyclopedia of World Biography. [Online] [Citado em: 13 de 03 de 2010.]
4. Sousa, Maria Adriana S. M. A arte médica em Roma antiga nos De Medicina de Celso. Ágora. Estudos Clássicos em Debate. 7, 2005, pp. 81-104.
5. Puigbó, Juan José. Aulus Cornelius Celsus (25aC-50dC)- De Medicina. Gaceta Méd Caracas. 4, 2002, Vol. 110.
6. Entralgo, P.Laín. Historia de La Medicina. Barcelona : Masson, 2006.

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

Este post tem 2 comentários

    1. Neto Geraldes

      Muito obrigado, Thiago. Vou ver sim. Grato pela indicação e por ter lido o post.

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