Ars longa, vita brevis: o primeiro aforismo de Hipócrates

Aforismos: Manuscrito do século XV
Aforismos: Manuscrito do século XV

“Ars longa, vita brevis” (a arte é longa, a vida é breve) é uma das expressões mais conhecidas e citadas no mundo todo, há séculos. Seu cunho filosófico traduz um sentimento universal e pode ser aplicada a qualquer área da atividade humana. A acepção original da palavra ars, entretanto, era relacionada à medicina. Ars longa, vita brevis é a tradução para o latim dos dois primeiros epigramas (com a ordem invertida) do Primeiro Aforismo de Hipócrates:

(original grego)

ὁ βίος βραχὺς,
ἡ δὲ τέχνη μακρὴ,
ὁ δὲ καιρὸς ὀξὺς,
ἡ δὲ πεῖρα σφαλερὴ,
ἡ δὲ κρίσις χαλεπή.
δεῖ δὲ οὐ μόνον ἑωυτὸν παρέχειν τὰ δέοντα ποιεῦντα, ἀλλὰ καὶ τὸν νοσέοντα, καὶ τοὺς παρεόντας, καὶ τὰ ἔξωθεν.

(tradução)

A vida é breve,
A arte é longa,
A oportunidade passageira
A experiência enganosa
O julgamento difícil
O médico deve estar pronto não apenas para cumprir o seu dever, mas também  garantir a cooperação do próprio doente, dos assistentes e das circunstâncias exteriores.”

Ludwig Van Beethoven compôs um cântico tendo Ars longa vita brevis como tema e que se valia de notas mais lentas para ars longa e mais curtas para vita brevis.
Ludwig Van Beethoven compôs um cântico tendo Ars longa vita brevis como tema e que se valia de notas mais lentas para ars longa e mais curtas para vita brevis.

Os aforismos estão intimamente ligados à medicina desde sempre. Foram criados pela medicina e continuam fazendo parte dela até hoje.  São legados dos gregos, que há quase 2500 anos construíram as bases de uma arte médica que ainda influencia o comportamento médico contemporâneo e que tem na figura mítica de Hipócrates de Cós a sua grande representação.  O saber dessa medicina ancestral foi preservado no Corpus Hipocraticum, uma coleção de cerca de 70 livros, cuja autoria a tradição atribui a Hipócrates, mas que na verdade foi obra de diversos autores em diferentes épocas.

Os aforismos são apresentados no Corpus Hipocraticum na forma de sentenças curtas e objetivas, com ensinamentos, regras, sintomas, prognósticos, tratamentos, princípios éticos e morais que sintetizam conceitos fundamentais do saber médico da época e provavelmente tinham intenção pedagógica. Os aforismos hipocráticos condensam um saber sistematizado, ordenado e foram ensinados e memorizados em todas as escolas de medicina ocidentais até o século XIX. Faziam parte do que hoje chamamos grade curricular das universidades, como disciplina ordinária e obrigatória de Medicina Teórica, por pelo menos um ano letivo. Das traduções que chegaram até nossos tempos são registrados 578 dessas frases, divididas em 7 seções.

Esse primeiro aforismo, ao longo do tempo foi, e ainda é, motivação para reflexões fundamentais para o exercício da arte da medicina. O contraste entre a vida curta e a vastidão da ciência, mostra claramente que por mais que o médico conheça a arte da medicina sempre há muito mais a aprender. Muitos dos princípios hipocráticos que foram basilares para o desenvolvimento da medicina como ciência estão implícitos nesse aforismo: a observação, a prudência, a necessidade do aprendizado constante e a consciência de que na medicina a verdade é relativa e mutável.

Referências

1. Hippocrates, Aphorismi. Perseus Digital Library. [Online] [Citado em: 25 de 09 de 2020.]
2. Antoniou G.A., Antoniou S.A.,Georgiadis S., Antoniou A.I. A contemporary perspective of the first aphorism of Hippocrates. Journal of Vascular Surgery. 56, 2012, Vol. 3, pp. 866-868.
3. Souza, M.J.M. A pervivência dos aforismos de Hipócrates: a edição portuguesa de 1762. [A. do livro] I., Anastácio V. coord Castro. Revisitar os saberes. Referências clássicas na cultura portuguesa do Renascimento à epoca moderna. Lisboa : Barbosa&Xavier, 2010.
4. Gijón, F (tradução). Hipócrates de Cos: Juramento, aforismos, sentencias y casos clínicos. Colección Philosophiae Memoria : Ediciones RG, 2017.
5. Rebollo, R.A. A Escola Médica de Pádua: medicina e filosofia no período moderno. Hist. cienc. saude-Manguinhos. vol.17 no.2, 2010.
6. Rezende, J.M. Linguagem Médica. 4ª. Goiânia : Ed. Kelps, 2011.

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

Este post tem 3 comentários

  1. Pedro Bueno

    Como sempre, interessantíssimo e com muita base de pesquisa. Dr Neto, seus textos são cada vez melhores. Abraço.

  2. Rui Tavares

    Neto, parabéns pelo belíssimo texto. Nunca tivemos tantas evidências da transitoriedade dos conhecimentos com esta pandemia.

  3. Neto Geraldes

    A ideia deste post surgiu pela lembrança de que, há muitos anos ouvi meu amigo e colega barra 70 Francisco José de Paula Lima recitar, em grego, o primeiro aforismo de Hipócrates numa conversa informal.

Deixe seu comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.