“Ars longa, vita brevis” (a arte é longa, a vida é breve) é uma das expressões mais conhecidas e citadas no mundo todo, há séculos. Seu cunho filosófico traduz um sentimento universal e pode ser aplicada a qualquer área da atividade humana. A acepção original da palavra ars, entretanto, era relacionada à medicina. Ars longa, vita brevis é a tradução para o latim dos dois primeiros epigramas (com a ordem invertida) do Primeiro Aforismo de Hipócrates:
(original grego)
ὁ βίος βραχὺς,
ἡ δὲ τέχνη μακρὴ,
ὁ δὲ καιρὸς ὀξὺς,
ἡ δὲ πεῖρα σφαλερὴ,
ἡ δὲ κρίσις χαλεπή.
δεῖ δὲ οὐ μόνον ἑωυτὸν παρέχειν τὰ δέοντα ποιεῦντα, ἀλλὰ καὶ τὸν νοσέοντα, καὶ τοὺς παρεόντας, καὶ τὰ ἔξωθεν.
(tradução)
A vida é breve,
A arte é longa,
A oportunidade passageira
A experiência enganosa
O julgamento difícil
O médico deve estar pronto não apenas para cumprir o seu dever, mas também garantir a cooperação do próprio doente, dos assistentes e das circunstâncias exteriores.”
Os aforismos estão intimamente ligados à medicina desde sempre. Foram criados pela medicina e continuam fazendo parte dela até hoje. São legados dos gregos, que há quase 2500 anos construíram as bases de uma arte médica que ainda influencia o comportamento médico contemporâneo e que tem na figura mítica de Hipócrates de Cós a sua grande representação. O saber dessa medicina ancestral foi preservado no Corpus Hipocraticum, uma coleção de cerca de 70 livros, cuja autoria a tradição atribui a Hipócrates, mas que na verdade foi obra de diversos autores em diferentes épocas.
Os aforismos são apresentados no Corpus Hipocraticum na forma de sentenças curtas e objetivas, com ensinamentos, regras, sintomas, prognósticos, tratamentos, princípios éticos e morais que sintetizam conceitos fundamentais do saber médico da época e provavelmente tinham intenção pedagógica. Os aforismos hipocráticos condensam um saber sistematizado, ordenado e foram ensinados e memorizados em todas as escolas de medicina ocidentais até o século XIX. Faziam parte do que hoje chamamos grade curricular das universidades, como disciplina ordinária e obrigatória de Medicina Teórica, por pelo menos um ano letivo. Das traduções que chegaram até nossos tempos são registrados 578 dessas frases, divididas em 7 seções.
Esse primeiro aforismo, ao longo do tempo foi, e ainda é, motivação para reflexões fundamentais para o exercício da arte da medicina. O contraste entre a vida curta e a vastidão da ciência, mostra claramente que por mais que o médico conheça a arte da medicina sempre há muito mais a aprender. Muitos dos princípios hipocráticos que foram basilares para o desenvolvimento da medicina como ciência estão implícitos nesse aforismo: a observação, a prudência, a necessidade do aprendizado constante e a consciência de que na medicina a verdade é relativa e mutável.
Referências
1. Hippocrates, Aphorismi. Perseus Digital Library. [Online] [Citado em: 25 de 09 de 2020.]
2. Antoniou G.A., Antoniou S.A.,Georgiadis S., Antoniou A.I. A contemporary perspective of the first aphorism of Hippocrates. Journal of Vascular Surgery. 56, 2012, Vol. 3, pp. 866-868.
3. Souza, M.J.M. A pervivência dos aforismos de Hipócrates: a edição portuguesa de 1762. [A. do livro] I., Anastácio V. coord Castro. Revisitar os saberes. Referências clássicas na cultura portuguesa do Renascimento à epoca moderna. Lisboa : Barbosa&Xavier, 2010.
4. Gijón, F (tradução). Hipócrates de Cos: Juramento, aforismos, sentencias y casos clínicos. Colección Philosophiae Memoria : Ediciones RG, 2017.
5. Rebollo, R.A. A Escola Médica de Pádua: medicina e filosofia no período moderno. Hist. cienc. saude-Manguinhos. vol.17 no.2, 2010.
6. Rezende, J.M. Linguagem Médica. 4ª. Goiânia : Ed. Kelps, 2011.
Como sempre, interessantíssimo e com muita base de pesquisa. Dr Neto, seus textos são cada vez melhores. Abraço.
Neto, parabéns pelo belíssimo texto. Nunca tivemos tantas evidências da transitoriedade dos conhecimentos com esta pandemia.
A ideia deste post surgiu pela lembrança de que, há muitos anos ouvi meu amigo e colega barra 70 Francisco José de Paula Lima recitar, em grego, o primeiro aforismo de Hipócrates numa conversa informal.