Aprendendo semiologia: sentindo o gosto da urina

Quinze séculos antes de Cristo, já havia referência no Papiro de Ebers a uma doença capaz de provocar intensa diurese. Galeno, no século I dC, descreveu uma enfermidade, que chamou de diarreia urinosa, muito rara segundo ele, que causava sede e diurese excessiva. Foi Arateus da Capadocia quem fez a primeira descrição do quadro clínico completo daquela doença que provocava enorme ingesta de água e imensas perdas urinárias, como se a água ingerida passasse direto para a urina. Segundo ele “o paciente nunca para de fazer água, o fluxo é incessante, como se tivesse um aqueduto aberto.” Deu-lhe o nome de diabetes, que significa algo como “passar através”.

A medical practitioner examining a urine flask -Corneli de Bie 1621-1664
A medical practitioner examining a urine flask -Corneli de Bie 1621-1664
uroscopy 15th century

Em 1675, o inglês Thomas Willis, identificando o gosto adocicado da urina dos diabéticos, “como um mel ou açúcar mortal” acrescentou a denominação “mellitus”, termo latino que significa algo como “que contém mel”.

A partir daí, o ato de experimentar a urina dos pacientes para identificação desse sabor adocicado tornou-se uma técnica semiótica para o diagnóstico da diabetes. Embora já fosse empregado esporadicamente por médicos mais antigos, somente depois que Willis descreveu esse gosto é que experimentar a urina se tornou uma técnica diagnóstica sistematizada.

A percepção do gosto doce da urina do diabético tornou-se um importante recurso semiológico e isso era feito levando gotas de urina à boca. Não devia ser um exame prazeroso, mas era um exame objetivo e provavelmente foi um dos primeiros testes diagnósticos específicos. Os médicos continuaram experimentando o sabor da urina até o século XIX.

medieval urine man

A ideia da degustação urinária pode ter vindo da importância que os antigos médicos davam à observação das alterações da urina. A uroscopia é uma técnica semiótica muito antiga. Médicos medievais faziam muitos de seus diagnósticos (claro que de acordo com o seu tempo) apenas examinando a urina, interpretando as alterações de cor, odor, aspecto, secreções e os vários níveis de sedimento que julgava ver. É muito comum a representação do médico medieval ou renascentista examinando um frasco de urina.

Relacionado à técnica de degustar urina, existe um ilustrativo episódio atribuído ao grande William Osler, um dos maiores médicos do seu tempo. Nos primeiros anos do século XX, Osler era um dos expoentes da John Hopkins Medical School, de Baltimore, que revolucionou o ensino médico. Sua ronda aos leitos era concorridíssima.   

William Osler
1849-1919
 

Numa aula, Osler ensinava aos alunos a importância da observação clínica. Mandou que trouxessem para a sala um frasco com a urina de um paciente com diabetes grave. Observou o frasco atentamente contra a luz, tocou a urina com o dedo e depois sugou cuidadosamente a extremidade digital. Passou então o frasco para os alunos, para que fizessem a mesma coisa e dessem sua opinião. Os estudantes, embora muitos estivessem enojados, estoicamente repetiram o procedimento semiológico demonstrado pelo mestre. Quando inquiridos sobre o que tinham observado, a resposta unânime foi a de que a urina tinha um gosto doce.

Osler, divertindo-se, comentou que talvez o sabor da urina fosse doce mesmo, mas “se vocês fossem bons observadores, teriam visto que eu coloquei meu dedo médio no frasco e levei o indicador à boca”.

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

Este post tem 4 comentários

  1. Monica de Camargo Coutinho

    Beber urina é bom para a saúde? Tenho um irmão que bebe. Ele tem 86 anos, mas parece ser um rapaz. Anda quilômetros, a pé, faz ginástica e não adoece. Seria por causa da urina? O rim filtrou o que é bom e enviou a impureza para fora. Como beber lixo pode ser bom?
    Obrigada
    Monica de Camargo Coutinho

  2. Rui, o livro Epidemias, de Hipócrates (ou atribuído a ele), há 2500 anos já dizia que examinar o corpo precisa de visão, audição, tato, olfato, paladar e raciocínio. O que nos parece estranho aos olhos de hoje, certamente foi bem justificado nos séculos XVII e XVIII. Seu comentário traz essa reflexão. Obrigado

  3. Rui Tavares

    Nós pediatras, por dependermos das informações dos acompanhantes, temos que utilizar de todos meios semióticos para chegarmos ao diagnóstico. Entre eles, observar as fraldas contendo urina e fezes. A coloração, odor, consistência, presença de muco, sangue, etc. Às vezes basta para um diagnóstico.

  4. Unknown

    Do blog do Neto Geraldes, uma curiosa atividade médica da antiga semiologia médica.

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