Ambroise Paré e a sexualidade do século XVI

       

        Ambroise Paré (1510-1590) foi um cirurgião do século XVI que revolucionou técnicas cirúrgicas, humanizando o tratamento de feridos de guerra e eliminando procedimentos extremamente agressivos então vigentes, como o de cauterizar com óleo fervente as feridas produzidas por arma de fogo. Ele gozou de grande prestígio na sua época, o que pode ser evidenciado pelo fato de ter sido cirurgião de vários reis da França e pelas obras sobre cirurgia e medicina que deixou.

       Numa dessas obras, o “Traitant de la generation de l’homme, recueilly des anciens et modernes”, algo como “Tratado da geração humana, coletado dos antigos e dos modernos”, Paré aborda um tema complicado para sua época: a sexualidade. Desde que o sacramento do matrimônio foi instituído entre os séculos XII e XIII, a Igreja regulamentava e regulava o relacionamento sexual entre os cônjuges. O sexo era um pecado, mesmo entre casados e não podia ser feito nos dias santos, nos dias de celebrações religiosas, na quaresma, nos domingos, durante o período menstrual e nem durante a gravidez ou amamentação. Na média, sobravam pouco mais de 90 dias por ano. O ato sexual era obrigatório, mas destinava-se exclusivamente à procriação. O desejo erótico fazia parte do pecado da luxúria. No século XVI, tempo de Paré, isso ainda continuava, embora entre casados já não fosse tão pecado assim e houvesse uma certa flexibilidade em relação aos dias permitidos. 
Na sua obra, escrita em francês, e não em latim como era a regra, Paré diz que Deus, na sua infinita sabedoria, distinguiu não só o homem, mas todos os seres vivos com dois sexos: macho e fêmea com a finalidade da preservação das espécies. E para garantir a união dos sexos e a procriação, Ele, na sua inestimável sabedoria, dotou as espécies do desejo da cópula e o ato sexual com grande prazer. O autor tem aqui o cuidado de ressalvar que esse deleitável prazer foi estabelecido por Deus conforme as leis do matrimônio.
Ambroise Paré

O cirurgião real esclarece que, sem o estímulo de uma irrefreável luxúria, as bestas brutas, que não são possuidoras da razão, não poderiam preservar a espécie.  Todavia, embora racional, o homem é a mais nobre das criaturas e nunca deixaria sua mente sujeita a coisa tão abjeta como é a cópula carnal. Além disso, tanto a mulher como o homem  teriam razões suficientes para sentir aversão ao contato sexual, a mulher por ter que carregar no ventre uma criança por nove meses e por conta das terríveis e quase mortais dores do parto. O homem, por sua vez, teria razões de sobra para abominar a relação sexual  por causa do local destinado à concepção na mulher “de onde saem imundícies diariamente”  e ainda umedecido pela vizinhança do intestino abaixo e da bexiga acima dele. Aqui temos que levar em conta que as condições e conceitos de higiene íntima eram precárias no século XVI. Era época de epidemias cruéis como a sífilis e a peste e a água vista como fator de disseminação. Banhos públicos foram desativados, e mesmo os privados eram desaconselhados pelos médicos, pois a água fragilizava o corpo e permitia a entrada de miasmas.
        Entretanto, a procriação era preceito pétreo. O multiplicai-vos do Gênesis era levado a sério. E Paré explica que, para que o homem não perdesse a memória de seu nome com o fim de sua vida e fosse preservada a difusão de sua semente, Deus fez com que o ato sexual não fosse um fardo tão grande, estimulando com humores produzidos sob a pele “pruridos venéreos”,  (e acentua: com desejo de coçar) dotando as partes destinadas à procriação, de um sentido mais requintado do que qualquer outra parte, capaz de provocar um embotamento da razão e o relaxamento da severidade da mente do homem, reduzindo a aversão que a razão lhe impunha e o tornasse predisposto ao contato sexual.

        Paré é referido como um homem religioso e seu texto deixa isso evidente, todavia percebe-se a busca de explicações mais racionais, recorrendo a conceitos hipocráticos e utilizando raciocínios teleológicos. Isso é, de certa forma, um retrato do pensamento médico renascentista em que ocorreram, num processo gradativo que se desenvolvia ao longo do período medieval, importantes avanços no conhecimento médico, que, sem refutar o pensamento religioso, tentava encontrar entendimentos naturais e mundanos para as doenças.
        Ambroise Paré apresenta também alguns conceitos próprios que rompiam com o entendimento habitual dos médicos do seu tempo. Um desses conceitos novos era o de que a mulher não era apenas um receptáculo da semente masculina e simplesmente encarregada de fazê-la germinar e se desenvolver.  A semente era um humor espumoso, branco, proveniente do mais puro sangue e cheias de espírito vital. A mulher também produzia sua própria semente que, junto com a masculina daria origem ao novo ser. Mais polêmico ainda, ele escreveu que a mulher precisava ser excitada sexualmente para produzir sua semente e assim, viabilizar a concepção, claro que com a necessária hierarquização da importância das sementes masculina e feminina no processo. Lembremos que ainda eram tempos de Inquisição e que publicações que desagradassem a Igreja podiam ter desfechos complicados. Mas são temas que serão abordados em um próximo post.

Mais sobre Paré pode ser lido clicando aqui.

Referências
1. Paré, Ambroise. Les oeuvres d”Ambroise Paré. Paris : s.n., 1664.
2. Dantas, Bruna SA. Sexualidade, cristianismo e poder.  Disponível em
http://www.revispsi.uerj.br/v10n3/artigos/html/v10n3a05.html.  [Online] [Citado em: 21 de dezembro de 2014.]
3. Polonia, A. Reflexões sobre alguns aspectos da vida quotidiana no século XVI. Revista de História. 13, 1995, pp. 75-96.
4. Ribeiro, Claudia M. O imaginário das águas e o aprendizado erótico do corpo. Educ Rev 35. 2009.

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

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