A revolução de Semmelweiss


20032016

O Hospital Geral de Viena, em meados do século XIX tinha uma maternidade que oferecia assistência gratuita à população pobre. Na verdade, eram dois serviços: na Primeira Clínica, os partos eram feitos por estudantes de medicina com a supervisão de renomados professores e na Segunda Clínica, a assistência estava a cargo de parteiras e aprendizes. As pacientes que dessem entrada nas segundas, quartas e sextas feiras (e todo o sábado) seriam atendidas na Primeira Clínica. As admitidas nas terças e quintas-feiras e aos domingos seriam atendidas na Segunda Clínica.
Ocorre que na década de 1840 era muito alta a mortalidade por febre puerperal nessas clínica. E era muito mais alta na Primeira, onde atendiam os estudantes e professores de medicina. A população percebera esse fato e as parturientes procuravam evitá-los ao máximo. Fazer o parto na Primeira Clínica era motivo de angústia e preocupação. Muitas mulheres imploravam para serem atendidas na clínica das parteiras. Outras retardavam a chegada ao hospital e acabavam tendo o parto na rua. E nelas, era baixa a incidência de febre puerperal.

Foi nessa época que surgiu Ignác Fülöp Semmelweis, um jovem médico húngaro, nascido em Budapeste no ano de 1818, então no Império Austro-Húngaro. Formou-se em medicina em Viena em 1844 e no mesmo ano foi admitido como uma espécie de estagiário em obstetrícia no Hospital Geral de Viena e em 1846 foi designado assistente. Angustiado com o excessivo número de mortes e sem aceitar as explicações dos médicos de seu tempo, Semmelweis dedicou-se compulsivamente ao estudo das circunstâncias que levavam àquelas mortes. Logo constatou estatisticamente a grande diferença de mortalidade entre as duas clínicas, por febre puerperal, como se vê na tabela abaixo. 

Tabela extraida do livro The Etiology, Concept, and Prophylaxis of Childbed Fever publicado em 1861 por Semmelweis



Ele observou que, na Primeira Clínica pacientes que permaneciam em trabalho de parto prolongado frequentemente evoluíam para a morte, enquanto que as pacientes que tinham partos prematuros ou nas ruas, dificilmente ficavam doentes. Constatou também que as alterações apresentadas pelos bebês que morriam junto com as mães eram muito semelhantes.
Semmelweis estava convencido de que a diferença de mortalidade entre as duas clínicas se devia a uma uma causa endêmica, desconhecida e não fruto da ação dos miasmas, conforme defendiam os médicos do hospital. Não aceitava também outras tentativas de explicação que seus colegas apresentavam de que essas mortes eram devidas ao medo das parturientes, ao pudor, por serem atendidas por homens, entre outras.
No Hospital Geral, as autópsias eram parte importante do ensino médico. No início de 1847, o professor Jacob Kolletschka foi ferido pelo bisturi de um estudante durante uma autópsia e logo desenvolveu uma grave doença, falecendo em poucos dias. Semmelweiss observou :
Ele (Kolletschcka) morreu de pleurisia bilateral, pericardite, peritonite e meningite (…) Eu pude ver claramente que a doença da qual Kollestchka morreu era idêntica àquelas das quais muitas centenas das pacientes da maternidade tinham também morrido”.
 Concluindo que o professor fora vítima da mesma doença que matava as parturientes, Semmelweiss teve a intuição ou o “insight” de que a causa tinha sido a contaminação do ferimento pelo bisturi por “partículas cadavéricas” que foram introduzidas no sistema vascular. Então, nas suas palavras:
Eu fui compelido a questionar se as partículas cadavéricas tinham sido introduzidas no sistema vascular daquelas pacientes que eu tinha visto morrer de idêntica doença. Eu fui forçado a responder afirmativamente”
Como os estudantes tinham frequentes contatos com cadáveres em autópsias e examinavam as pacientes imediatamente depois desses contatos, concluiu que essas partículas cadavéricas eram levadas às pacientes pelas mãos dos estudantes e médicos. 
Embora sofrendo resistências, Semmelweis conseguiu tornar obrigatório que antes dos exames das pacientes, as mãos dos estudantes e médicos fossem lavadas com água e sabão e desinfetadas com soluções cloradas. Ele disse que o uso de soluções cloradas era importante porque só água e sabão não eram capazes de remover as partículas cadavéricas, o que podia ser identificado pelo cheiro que permanecia nas mãos após o manuseio dos cadáveres. Observe-se que o uso de água clorada foi empírico, não existia o conceito de antissepsia, ou assepsia. Na verdade não existia o conceito de que micro-organismos pudessem causar doenças. Daí a importância e o pioneirismo de Semmelweis.
Com essa medida, instituída em meados de maio de 1847, a mortalidade por febre puerperal caiu drasticamente. Em abril haviam morrido 18,3% das pacientes. Em maio 12,2%. Em junho a taxa caiu para 2,2% e em julho, para 1,2%.

Ignaz Semmelweis foi revolucionário. Mudou conceitos, mudou atitudes. Foi um dos precursores da antissepsia e da teoria dos germes. Soube usar a arte da observação e principalmente a arte de pensar e contestar teorias estabelecidas, percebendo que elas não só não explicavam, como eram contrárias às forças das evidências que ele observava. Sofreu, todavia, forte resistência dos médicos de seu tempo às suas ideias, com graves e trágicas consequências. Trataremos disso no próximo post.

(reedição de post publicado originalmente em 03.06.2013)


Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

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