No final do ano de 1347 a Europa começava a vivenciar a pior catástrofe da sua história quando surgiram os primeiros casos de uma doença que logo se espalhou por todo o continente e, estima-se, dizimou entre 25 e 50% da sua população. O ano de 1348 é apontado como a data-chave da eclosão da epidemia. Há consenso entre os historiadores da medicina, com poucas vozes discordantes, de que a causa dessa mortandade foi a peste bubônica.
Sabemos hoje que a peste bubônica é uma doença infecciosa, causada pela bactéria Yersinia pestis e era originalmente uma doença frequente dos roedores silvestres. Ela foi transmitida a outros animais, aos ratos domésticos e ao homem através das pulgas, principalmente das Xenopsila cheopis. Na peste do século XIV o rato negro (Rattus rattus) foi o principal responsável pela disseminação da doença.
De 2 a 6 dias após a picada da pulga começam a aparecer os primeiros sintomas da doença: febre, dores musculares, dor de cabeça, náuseas, taquicardia, confusão mental. Surgem inflamações nos gânglios linfáticos da região da picada, que formam nódulos, podendo, às vezes atingir o tamanho de um limão, ou maior, muito doloroso, contendo material purulento. O nódulo é conhecido como bubão, daí o nome da doença. Esta é a forma bubônica da doença, a mais comum. A forma septicêmica ocorre devido a disseminação do bacilo no sangue, é muito grave e frequentemente leva ao óbito. Existe também a forma pneumônica, com manifestações respiratórias como dispneia, expectoração com sangue, dor toráxica intensa. O quadro é extremamente grave levando a toxemia, torpor e morte. Na forma pneumônica a Yersinia pestis é transmitida por via respiratória e é muito contagiosa. A forma pneumônica pode ter sido responsável por vários dos episódios epidêmicos que ocorreram na pandemia do século XIV.
Na fase toxêmica da doença podem ocorrer fenômenos hemorrágicos, produzindo hemorragias, equimoses, necroses, que conferem coloração escura nos pontos acometidos. Deve ter vindo daí, certamente, a denominação de “Peste Negra”.
Hoje a doença é rara e curável com o tratamento com antibióticos, que precisam ser introduzidos muito precocemente.
Na epidemia do século XIV na Europa, os primeiros casos apareceram no porto mediterrâneo de Messina, trazida por embarcações genovesas procedentes do Oriente, mais especificamente de Kaffa, na Criméia, importante ponto de comércio dos genoveses. De Messina a peste foi para a Sicília, Gênova e Veneza e continuou se espalhando, atingindo toda a Europa.
Em 1347 a cidade de Kaffa foi atacada por tártaros, em cujos homens a doença se manifestou durante o cerco, praticamente dizimando o seu exército. Alguns historiadores contam que os tártaros chegaram a catapultar homens mortos da peste por sobre os muros de Kaffa, com a finalidade de transmitir a doença intramuros, trabalho que certamente os seus ratos já haviam feito. A contaminação dos ratos domésticos e as cidades foram os fatores fundamentais para a disseminação da doença.
Existem várias fontes históricas que nos dão uma boa ideia da gravidade da doença e da intensidade da epidemia de 1348. O escritor Giovanni Bocaccio (1313-1375) que escreveu sua obra-prima Decamerão durante a epidemia, assim descreve:
“Afirmo, portanto que tínhamos atingido já eram o ano bem farto Encarnação do Filho de Deus, de 1348, quando, na mui excelsa cidade de Florença, cuja beleza supera a de qualquer outra da Itália, sobreveio a mortífera pestilência. Por iniciativa de corpos superiores ou em razão de nossas iniquidades, a peste, atirada sobre os homens por justa cólera divina e para nossa exemplificação, tivera início nas regiões orientais há alguns anos. Tal praga ceifara, naquelas plagas, uma enorme quantidade de pessoas vivas. Incansável fora de um lugar a outro e estendera-se, de forma miserável para o Ocidente.” (…) Na cidade de Florença, nenhuma prevenção foi válida, nem valeu a pena qualquer providência dos homens.
Aqui, Boccaccio descreve o quadro clínico, que deixa pouca dúvida de que se tratava realmente da peste bubônica.
(…)A peste, em Florença, não teve o mesmo comportamento que no Oriente. Neste, quando o sangue saía pelo nariz, fosse de quem fosse, era sinal evidente de morte inevitável. Em Florença apareciam no começo, tanto em homens como em mulheres, ou na virilha ou na axila, algumas inchações. Algumas destas cresciam como maçãs, outras como um ovo; cresciam umas mais, outras menos, chamava-as o populacho de bubões. Dessas duas referidas partes do corpo, logo o tal tumor mortal passava a repontar e a surgir por toda a parte. Em seguida, o aspecto da doença começou a alterar-se; começou a colocar manchas de cor negra ou lívidas nos enfermos. Tais manchas estavam nos braços, nas coxas e em outros lugares do corpo. Em algumas pessoas as manchas apareciam grandes e esparsas; em outras, eram pequenas e abundantes. E do mesmo modo como, a princípio, o bubão fora e ainda era indício inevitável de morte futura, as manchas também passaram a ser mortais depois, para os que as tinham instaladas.
O monge franciscano Michele Piazza deixou esse relato: “Devido a uma infecção do hálito que se espalhou em torno deles enquanto falavam um infectava o outro… e não só faziam morrer quem quer que falasse com eles como também quem quer que comprasse, tocasse ou tirasse alguma coisa que lhes pertencesse. “
A epidemia espalhou-se rapidamente por toda a Europa, provocando pânico na população, perplexidade e impotência. A doença avançava ceifando vidas em toda a parte, em todos os níveis. De nada valiam as medidas preventivas que a população usava para esperar a peste que sabia que ia chegar. Em poucos dias algumas cidades viam morrer metade de sua população. Morriam padres, prefeitos, autoridades. Levava a indisciplina, saques, ruptura de laços familiares. São relatados vários casos em que parte da população, certa da morte inevitável tentava aproveitar seus últimos dias em festas, orgias e bebedeiras.
No Decamerão Boccaccio ilustra esse fato:
“Em meio a tanta aflição e a tanta miséria da nossa cidade, a reverenda autoridade das leis, tanto divinas como humanas, caía e dissolvia-se. Os ministros e executores das leis, assim como os outros homens estavam todos mortos, ou enfermos ou tinham perdido os seus familiares, de modo que não podiam desempenhar função alguma. Por decorrência deste estado, permitia-se a todos fazer aquilo que melhor lhes aprouvesse.”
Guy de Chauliac, que hoje é o mais conhecido médico daquele tempo deixou seu testemunho:
“A grande mortandade teve início em Avignon em janeiro de 1348. A epidemia era tão contagiosa que se propagava rapidamente de uma pessoa a outra; o pai não ia ver seu filho nem o filho a seu pai; a caridade desaparecera por completo.”
No Vitae Paparum Avenionensium do Papa Clemente VI a gravidade dos efeitos da peste é destacada:
“No ano do Senhor, 1348, aconteceu sobre quase toda a superfície do globo uma mortandade que raramente se tinha conhecido semelhante. (…) O pai deixava o filho em seu leito, e o filho fazia o mesmo com o pai. (…)quando numa casa alguém tinha sido tocado por este mal e tinha morrido, acontecesse muito frequentemente, todos os outros moradores terem sido contaminados e mortos da mesma maneira súbita. (…) Muitos ainda, que pegaram esta doença e dos quais se acreditava que morreriam com certeza imediatamente sobre o chão foram transportados, sem a mínima discrição até a fossa de inumação. E assim, um grande número foi enterrado vivo.“
Em um próximo post falaremos sobre a percepção das pessoas daquele tempo sobre as causas da peste, os culpados e como os médicos a enfrentaram.
Referências
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