A peste e os médicos. Prevenção e tratamento na Idade Média

A peste chegou avassaladora na Europa em meados do século XIV, matando entre 25% e 50% da população do continente e causando pânico e profundas consequências sociais, políticas e culturais. Para combatê-la os médicos tentaram diversos tratamentos, baseados em diversas teorias.

Uma boa fonte para entendermos a tentativa de enfrentamento da epidemia pelos médicos da época é o Regimento Proueytoso Contra ha Pestenença, um incunábulo que, embora tenha sido impresso no final do século XV, foi baseado num texto de meados do século XIV escrito por um médico de Montpellier chamado Johannes Jacobi. Nesse texto, o autor esclarece que para combater a peste:

“(…) primeiro o homem deve se afastar do mal e inclinar-se ao bem e que homem primeiramente há de confessar seus pecados humildemente. Por isso, em tempo de pestilência, o grande remédio é a santa penitência e a confissão, que precedem e são muito melhores que todas as mezinhas”

Plague doctor

A ideia de doença como castigo divino é muito presente na Idade Média. Assim, é reforçada a necessidade de evitar o pecado para estar bem com Deus e merecer a Sua clemência. Mas também mostra que é fundamental estar bem com a Igreja ao ressaltar a importância da confissão e das penitências, que são melhores que qualquer medicamento (mezinha).

Com a confissão e as penitências, a Igreja tem o poder de regenerar a alma, de controlar o comportamento. Ela é a intermediária obrigatória entre Deus e os homens e pode absolver os pecados e oferecer a salvação e interceder pela cura.

Uma recomendação recorrente em vários textos da época para se livrar da epidemia é fugir do local apeçonhentado, porque a corrupção do ar, a podridão, o mau cheiro eram causas da peste. Quem não pudesse fugir, deveria evitar locais com mau cheiro, onde existissem corpos mortos, águas sujas. Novamente aponta a corrupção do ar, o mau cheiro, a podridão, como coisas a serem evitadas. Onde houvesse o mau cheiro, haveria o perigo da corrupção do ar. Deveria ser evitado a todo custo, o terrível vento que vinha do sul.

“Fechem-se, portanto, as frestas ou janelas que vão ou estão pera o sul até uma hora depois do meio-dia, e abram-se as que estão pera o norte”.

Claro que, se o mau cheiro corrompe a atmosfera e assim é causa de doença, o cheiro bom era percebido como tendo efeito inverso, de proteção, de combater a corrupção do ar. O autor do Regimento Proveitoso contra a Pestilência ensina, para a purificação das casas:

“E faça-se também com fumo de boas ervas aqui descritas, baga de louro, junípero, uberiorgano, que acharás nos apotecários. E de alosna, e hissope, e arruda, e artemísia, e com lenho de aloés, que é melhor que todos porém não se pode comprar por pequeno preço. E tal fumo deve entrar pela boca e pelo nariz porque assim endireitam as coisas de dentro.”

Alosna é a planta de cujas folhas é feito o absinto, bebida de grande teor alcoólico. O junípero (zimbro) é uma planta nativa do hemisfério norte, é utilizado como aromatizante no gim. O junípero ainda hoje é utilizado em fitoterapia e aromaterapia. A utilização de plantas para o tratamento de doenças é tão antiga quanto a História da Medicina. Entre as fontes que retratam a história dos medicamentos, uma das mais importantes é a Materia Medica de Pedanius Dioscorides, que viveu em Roma no tempo do imperador Nero. A Materia Medica foi a base do conhecimento farmacológico ensinado nas escolas de medicina do ocidente até o século XVII. Nela são descritas aplicações medicinais de cerca de 600 plantas, das quais algumas ainda hoje fazem parte de farmacopéias. É bem possível que no texto analisado exista a influência de Dioscorides. Outras recomendações eram a de se evitar aglomerações e banhos frequentes, possivelmente porque dilataria os poros e permitiria a entrada dos venenos do ar corrompido. Igualmente perniciosa era a luxúria, também causa de podridão. O ato sexual precisava ser evitado em tempos da peste.

Outro conselho do Regimento:

“Muito sã cousa é que se lave a boca, e os olhos, e as mãos frequentemente em cada dia com água rosada misturada com vinagre. (…) E também é grande remédio vazar o ventre. E se o ventre não se puder vazar naturalmente, toma um clister.”

A triaga ou teriaga era uma espécie de panaceia, em cuja composição se utilizavam a carne de víboras e diversos ingredientes, como a pimenta, ópio, gengibre, mirra. Tinha numerosas indicações, entre elas o tratamento das mordeduras de cobras, contra a peçonha. Era indicada como método de prevenir a peste. Da mesma forma era bom comer boas comidas e vinho puro, sem excessos.

Na sociedade hierarquizada medieval, essa hierarquia também se estende aos tratamentos médicos. Os mais ricos podem conseguir melhores molhos e melhor proteção. Tem acesso aos condimentos e especiarias, mais caros e mais eficientes, segundo os médicos medievais. Os muitos pobres devem contentar-se com poucas ervas. Os médicos vendem seu trabalho e seu conhecimento. Cirurgiões e barbeiros também. Em época de peste proliferam charlatães, com seus conselhos e poções. Mas o pobre sabe que precisa permanecer no lugar onde Deus o colocou, a mesma hierarquia que existia nos Céus, existia na Terra. O homem medieval obedecia aos seus superiores, ao rei, aos prelados, ao seu senhor, aos chefes comunais. O valor da autoritas era imposto e eram múltiplas as autoridades às quais se devia obediência. Le Goff diz que foi justamente no século XIV (cenário deste Regimento) que o homem aprendeu a se revoltar em caso de necessidade. O Regimento proveitoso é claro:

“E com estas cousas busquem-se para os ricos muito boas salsas ou salseamentos. Porque, se forem pobres, contentem-se com arruda e salva, noz moscadas, perrexil, e tudo misturado com vinagre faz um molho muito bom. E se não forem muito pobres, tomem cominho e açafrão e misturem tudo com vinagre. E tal molho é muito bom e destrói, acaba ou tira toda a podridão.”

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Referências

1. CZERESNIA, D. 1997. Do contágio à transmissão: uma mudança na estrutura perceptiva de apreensão da epidemia. História, Ciências, Saúde-Manguinhos. 1997, Vol. 4, 1, pp. 75-94.
2. BASCHET, J. A civilização feudal. Do ano mil à colonização da América. [trad.] M. REDE. São Paulo : Globo, 2006.
3.ARRIZABALAGA, J. 1991. La Peste Negra de 1348: los orígenes de la construcción como enfermedad de una calamidad social. Acta Hispanica ad Medicinae Scientiammque Historiam Illustrandam. 1991, Vol. 11, pp. 73-117.
4. ROSA, M.C. 2005. Em torno de dois textos médicos antigos. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. 2005, Vol. 12, 3, pp. 771-774.
5. —. 2005. Regimento proueitoso contra ha pestenença: edição semi-diplomática. História, Ciências, Saúde-Manguinhos. 2005, Vol. 12, 3, pp. 801-820.
6. CUNHA, F.A.F.X. Panacéias nossas de cada dia- ontem e hoje. Cadernos de Cultura. 9, 1995, pp. 12-21.
7. LE GOFF, J. O homem medieval. [trad.] M.J.V. FIGUEIREDO. Lisboa : Editorial Presença, 1987. pp. 27-28.
8. ROSA, M. C. Regimento proueitoso contra a pestinencia: Glossário. Historia, Ciências, Saúde, Manguinhos. 2005, pp. 869-981.

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

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