A Mona Lisa e seus problemas de pele

Leonardo da Vinci era um sujeito genial, se considerarmos a definição de gênio como alguém de grande talento, com extraordinárias capacidades intelectual e de inovação em uma determinada área. E era genial como cientista, como arquiteto, como engenheiro, como inventor, como anatomista. Como pintor, sua genialidade produziu, entre 1503 e 1506, a mais famosa obra de arte do mundo ocidental: a Mona Lisa. Também conhecida como La Gioconda, a Mona Lisa é uma pequena pintura de 77 x 55cm, em óleo sobre madeira, que ocupa lugar de destaque no Museu do Louvre em Paris e é cercada de mistérios.

Um desses mistérios é a própria identidade da modelo famosa. Várias hipóteses foram feitas, mas o mais consensual é que se trata de Madonna Lisa Maria di Gherardini. Ela nasceu em 1479, e teria 23 ou 24 anos de idade quando Leonardo da Vinci iniciou os trabalhos. A senhora Lisa foi a terceira esposa de Francesco del Giocondo, um rico mercador de seda de Florença. O termo Mona é uma contração de Madonna.

A Mona Lisa original à esquerda e a cópía do Museu do Prado à direita

Recentemente foi encontrada no Museu do Prado em Madrid uma cópia da Mona Lisa, que estava adormecida em algum canto daquele museu desde o início do século XIX. Depois de cuidadosamente restaurada, chegou-se à conclusão de que essa obra foi feita ao mesmo tempo em que a Gioconda original. Sua autoria seria de Andrea Salai ou Francesco Melzi, os discípulos preferidos de Da Vinci. A Mona Lisa do Prado também foi feita em óleo sobre madeira, tem dimensões parecidas e está em bem melhor estado de conservação do que a obra principal. A comparação entre as duas obras tem fornecido alguns bons elementos para entender melhor a sua criação.

Leonardo da Vinci foi precursor dos estudos anatômicos.  Sua grande capacidade de observação e o seu cuidado com os detalhes e a com a precisão deram ensejo a que os estudiosos encontrassem indícios de distúrbios de natureza médica na célebre modelo.  Assim, várias alterações na pele da jovem Gioconda foram identificadas:

  • No ângulo interno do olho esquerdo há uma lesão amarelada, achatada, saliente, bastante sugestiva de xantelasma, que é um pequeno depósito de gordura e colesterol imediatamente abaixo da superfície da pele.
  • No dorso da mão direita percebe-se uma nodulação uniforme, avaliada com cerca de 3 cm. A principal suspeita diagnóstica seria a de um lipoma subcutâneo, que é uma tumoração benigna formada por gordura. Essa lesão é bem visível nas duas pinturas, a do Louvre e a do Prado, mas o xantelasma só aparece na Mona Lisa original.

Por conta dessa associação de xantelasma e lipoma em paciente jovem, aventou-se a hipótese de que a Gioconda teria aumento do colesterol e lipídeos no sangue.

Destaque das lesões descritas: Xantelasma, Cicatriz infra labial e lipoma. (de cima para baixo)
  • Ausência de cílios e sobrancelhas e um possível recuo da implantação da linha do cabelo.  Aqui, várias hipóteses diagnósticas foram levantadas. Talvez tenha mais adeptos a que propõe que a Gioconda tivesse hipotireoidismo pós-parto. Mehra e Campbell identificaram até pelos finos e ásperos, e uma tonalidade amarelada da pele, denunciando problemas no metabolismo do caroteno e um possível bócio. Também foram cogitadas: alopecia areata, alopecia universal (nesse caso, a senhora retratada estaria usando uma bem-cuidada peruca) e alopecia frontal fibrosante. Mas pode ser também que a madarose seja devida a uma espécie de moda renascentista, ou simplesmente às várias restaurações realizadas na obra, que acabaram provocando a supressão dos pelos perioculares. Note-se que na cópia do Museu do Prado as sobrancelhas aparecem, embora bem finas.
  • Na região logo abaixo do lábio inferior pode-se ver uma pequena cicatriz alinhada, levemente elevada, que foi identificada em 1992 por Borkowski. Essa cicatriz seria, segundo o autor, decorrente de trauma contundente, levando à perda de dentes, o que ajudaria a explicar o misterioso sorriso da Mona Lisa. Ele especula que na verdade não seria propriamente um sorriso, mas uma expressão facial característica de pessoas que perderam peças dentais frontais.
  • Existe um pequeno ponto escurecido no ângulo interno da pálpebra superior direita, que foi indicado como um possível nevo. Essa lesão não existe na cópia do Prado. Olhando com mais cuidado, (e procurando defeito) esse ponto escuro parece estar circundado por um halo elevado, podendo sugerir uma lesão queratósica inespecífica. Mas pode ser simplesmente um artefato causado pelo tempo.
A madarose: ausência de cílios e sobrancelhas , o suposto nevo em região palpebral D e o xantelasma em ângulo interno esquerdo

Todas essas lesões dermatológicas (e mais numerosas outras doenças sistêmicas) foram identificadas em um pequeno quadro pintado sobre madeira, há mais de quinhentos anos. A enigmática Mona Lisa ainda permanece intrigando e instigando estudiosos da medicina e da história da arte

Leonardo da Vinci era mesmo um sujeito genial.

Obrigado a Ana Raquel C. Geraldes pela revisão e Patrícia Pessoa pelo tratamento das imagens.

Referências

1. Mehra, M.R. e Campbell, H. R. The Mona Lisa Decrypted: Allure of an Imperfect Reality . Mayo Clinic Proceedings. carta ao editor, 2017, Vol. 93, 9.

2. Garcia, A.M. La Mona Lisa: un compendio de Medicina Interna. An. Med. Interna (Madrid) vol.23 no.3 2006.

3. Jones, R. Leonardo da Vinci: anatomist. British Journal of General Practice. 62 (599): 319., 2012.

4. Dequeker, J, Muls, E e Leenders, K. Xanthelasma and Lipoma in Leonardo da Vinci’s Mona Lisa. Isr Med Assoc Jr. 6(8):505-6., 2004.

5. Viana, Renata C. Análise médica da enigmática Mona Lisa / Leonardo da Vinci. Arte médica blog. [Online] [Citado em: 01 de 07 de 2024.] https://medicineisart.blogspot.com/2011/02/analise-medica-da-enigmatica-mona-lisa.html.

6. Sri Kantha, S. e Matsui , Y. Medical Diagnosis on Leonardo’s ‘Mona Lisa’ Portrait. International Medical Journal. 2019, Vol. 26, 6 pp 446,447.

7. Campbell V, Mc Kenna. The Mona Lisa: an example of frontal fibrosing alopecia masquerading as Renaissance fashion? Clinical and Experimental Dermatology,. Volume 45, Issue 4, Pages 452–453,, 2020, pp. 452-453.

8. JE, Borkowski. Mona Lisa: the enigma of the smile. Journal of Forensic Sciences. 3 (6):1706-1711. , 1992.

9. Santos-Bueso, E., Vico-Ruiz, E. e García-Sánchez, J. Patología ocular en la obra de Leonardo da Vinci (III). Estudio comparativo entre la Mona Lisa y la copia del Museo del Prado. Archivos de la Sociedad Española de Oftalmología. 2012, Vol. 87, 11.

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

Este post tem 11 comentários

  1. SONIA APARECIDA PIRES

    Otimo relato Neto, sempre haverá o que descobrir a respeito dessa maravilhosa obra. Essas observações que voce nos traz relacionadas a nossa área, a medicina, torna tudo muito especial. Obrigada.

  2. Zouraide Guerra

    Parabéns, Neto! Adoro seu jeito de escrever e de transformar em histórias as curiosidades dos acontecimentos da vida. Com isso ganhamos nós, seus leitores. Gratidão!

  3. Zouraide Guerra

    Parabens, Neto,! Adoro seu jeito de escrever e de transformar em histórias as curiosidades “escondidas” nos acontecimentos do mundo. Mais uma para aumentar nosso conhecimento. Gratidão!

  4. Regina Alfa

    Parabéns Neto . Seus textos são excelentes

  5. PEDRO ALFREDO NAVARRO GOES

    Excelente, Neto. Parabéns pelo texto sempre agradável de ler. As pesquisas sobre essa obra nunca se esgotam e a gente sempre aprende algo mais. E legal envolver a Ana Raquel no trabalho. Abração.

  6. Luís Alfredo Lindoso

    Excelente texto, Neto!
    Contribui muito para enriquecer nossos conhecimentos!!!
    Um abraço

  7. Paulo Roberto Vilela Pinto

    Se pesquisar mais deformidades a Monalisa poderá se tornar a Mona áspera.
    😁😁😁😁😁😁

  8. Valéria

    Muito interessante o assunto, e o blog, interessantíssimo!
    Parabéns, e gratidão!

  9. Regina Alfa

    Obrigada Neto pelo excelente texto .
    É muito bom ampliar nossos conhecimentos .
    Gosto muito dos textos que você escreve.

  10. Lourdes

    Parabéns meu amigo, comentando de forma curiosa e competente, a grande obra do gênio Leonardo. E o fez histórica e poeticamente. Amei.

  11. Rui Tavares

    Parabéns Neto, mais um excelente texto para nos enriquecer de conhecimento.

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