A medicina mística na Alta Idade Média

         
Constantino e o Chi-Rho  símbolo cristão

O advento do cristianismo e seu processo de consolidação construíram uma Igreja poderosa e hegemônica, que mantinha uma relação de mão dupla com o Estado, ao qual dava sustentação, interferindo no imaginário popular e de cujas decisões dependia para sua manutenção e fortalecimento.

Num processo que vinha ocorrendo desde a decadência do Império Romano e que a Igreja incorporou e sustentou, a doença vai sendo percebida como tendo causas sobrenaturais, como consequência do pecado, como castigo divino. A racionalidade pregada pelos ensinamentos hipocráticos e galênicos deixa de ser perseguida. Na Alta Idade Média, a prática médica passa a ser feita principalmente pelos monges, em nome da caridade cristã. 

O corpo passa a ser visto como a prisão da alma. A Igreja vai criando uma moral rígida, responsabilizando os que se afastavam dessa moral. As doenças são consideradas como provas ou castigos enviados pela divindade e seriam compensadas no futuro celestial. Ao mesmo tempo em que era um castigo divino a doença poderia significar a redenção da alma. Jacques Le Goff acentua que tudo o que é relacionado ao sexo vai se tornado pecaminoso, deve ser desprezado, refreado e isso se manifesta mais intensamente no corpo feminino que é visto como arma do diabo. Diversos tabus surgem e tem guarida no imaginário medieval, com destaque para os relacionados com a menstruação. Relacionamento sexual durante o período menstrual resultava em filhos leprosos. A lepra na alta idade média era a expressão simbólica, a essência de doença, enfermidade do corpo e da alma. Gregório de Tours conta que Constantino teria ficado leproso por perseguir os cristãos e curou-se após sua conversão ao cristianismo. 


Um dos fatores importantes na consolidação do cristianismo foi a introdução de intermediários nas reivindicações a Deus, então uma figura longínqua e de acesso difícil, principalmente às pessoas com diferentes tradições místicas, com seus deuses capazes de curar e espantar os males. Ocorreu então na Idade Média grande profusão de santos. Vários deles passaram a ser invocados para auxiliar na cura de diversos males: Santa Luzia, para as doenças dos olhos, São Vito e São Guido para a coréia, São Lázaro para a lepra. Santa Águeda auxiliava as doenças da mama, Santa Apolônia era invocada em casos de dor de dente, São Brás para os males da garganta. 
Cosme e Damião. Fra Angélico
Cosme e Damião, os santos gêmeos, foram dos primeiros a serem cultuados e sua tradição é bastante rica. Consta que viveram no séulo III,  eram árabes e filhos de pais cristãos. Existem registros que atestam o culto a eles desde o século V, com relatos da existência nas igrejas de um certo óleo com poder de cura. Diz a tradição que foram perseguidos por Diocleciano e martirizados. São cultuados até hoje e tornaram-se padroeiros de várias profissões relacionadas à saúde. Diz uma  lenda famosa, que foi imortalizada  por Fra Angelico em um de seus quadros, que São Cosme e Damião, certa ocasião, para curarem um enfermo com a perna gangrenada transplantaram-lhe, com sucesso, a perna de um etíope negro que já tinha sido sepultado.


Os primeiros médicos cristãos são sacerdotes, que enfatizam a necessidade da fé. Para curar o corpo, é preciso curar a alma. As doenças tem causas místicas: possessão demoníaca, associação com o pecado. Jejuns e vigília tornam-se práticas comuns de purificação. 

Na Alta Idade Média começaram a surgir os locais onde eram acolhidos doentes e peregrinos. Uma das decisões do Concílio de Nicéia em 325, convocado por Constantino foi que cada cidade deveria ter um xenodóquio, estabelecimento destinado à acolhida de peregrinos doentes. Constantino e Juliano construíram outros hospitais notadamente em Constantinopla, alguns para receber os portadores de lepra, que eram rechaçados pela população e acolhidos nesses locais, graças à caridade cristã. No ano de 370 há o relato da fundação da mais antiga casa de saúde, por São Basílio em Cesarea na Capadócia. Em 400, uma nobre romana chamada Fabíola, convertida ao cristianismo, manda erguer o primeiro grande hospital, chamado de Nosocomium, influenciada pelas pregações de São Jerônimo. 
Esses primeiros hospitais na verdade apenas acolhiam o doente, proporcionavam-lhe alimento, hospitalidade e apoio espiritual. O tratamento das enfermidades era feito em segundo plano. Os primeiro hospital destinado ao tratamento dos doentes parece ter sido o Hotel-Dieu de Lyon em 542. Diversos estabelecimentos monásticos foram criados com diferentes denominações: Infirmarium, para os monges doentes, Xenodoquium para os peregrinos estrangeiros, Gerontochium para os velhos, Orphanotropium, para os órfãos, Nosocomium para os doentes em geral e Echinodochium leprosorum para os leprosos. 

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

Este post tem um comentário

  1. Neto Geraldes

    Gregorio de Tours viveu no século VI. Autor de Historia Francorum, importante fonte histórica da época. Bispo, fortaleceu a igreja. Também foi canonizado. (São Gregorio de Tours.

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