Paineira espinhuda- fonte Wikipedia |
O texto abaixo é do meu amigo Rui Tavares, pediatra e escritor, que, generosamente, mais uma vez prestigia e valoriza o blog com sua sensibilidade.
Penso que, na infância, toda criança deveria ter um cachorro e uma árvore. Tive o Cupido, cujas histórias contarei em outra oportunidade, e a Paineira – assim mesmo, com maiúscula, porque ela era uma personalidade. Ficava lá, bem no meio do quintal, num tempo em que as casas do interior tinham muito espaço. Era tão grande e poderosa que nunca consegui subir nela. O tronco erigia-se por uns quatro metros, depois abria em vários galhos que armavam a maior sombra, onde cabiam todos os amigos da vizinhança. Meu pai, muito cuidadoso, tirava com o machado todos os espinhos para que não machucassem a criançada. Paineira em Brasília chama-se barriguda. Há muitas no Parque da Cidade, mas nunca encontrei nenhuma daquele tamanho. A minha barriguda provocava tanto minha imaginação, que até hoje, mais de cinquenta anos depois, continuam a brotar novas ideias.
Naquela sombra nós fazíamos estradinhas, e os caminhões, carros e ônibus andavam em harmonia. Viajávamos até para a Checoslováquia, que nem existe mais. Sabe quem me falou desse país? A vizinha da minha casa, torcedora do Palmeiras e que escutava o jogo pelo rádio. O Brasil jogou contra a Checoslováquia na Copa do Mundo de 1958. Quando o “Parrrmeira” fazia gol a gente escutava os gritos dela e as risadas do seu marido. Italiana inteligente, aprendeu a ler sozinha mas não sabia escrever. Ela enviava notícias para o filho, que morava na Alemanha, cortando palavras da revista e colando cada pedacinho, levava dias para terminar a carta. Foi a melhor amiga da minha mãe.
Voltando para minha Paineira, tinha também um balanço feito de cordas. Meu pai tinha muitas cordas, era caminhoneiro. Jogou uma delas com bastante força e passou por cima do galho. Fez um daqueles nós de correr, que todo caminhoneiro sabe fazer, colocou uma tábua e assim ganhei o melhor balanço do mundo! Nele eu voava, e no vai-e-vem chegava a todos os lugares sobre os quais eu já havia lido no “O Cruzeiro”, revista que tinha na barbearia. Minha mãe olhava da janela e gritava para não ir tão alto. Meu pai, com aquele sorriso maroto, ia junto na minha viagem. Na barbearia eu conheci Brasília muito antes da inauguração. Gostava de ver as fotos dos pioneiros abrindo as estradas. Nem imaginava que um dia estaria morando lá. Também não sonhava que um dia teria filhos morando tão perto da antiga Checoslováquia.
Tinha uma época do ano em que a Paineira perdia todas as folhas, acho que era na época do frio. Apareciam grudadas nos galhos um monte de bolas verdes que meu pai derrubava, colocava para secar e depois tirava a paina, tipo de algodão que servia para encher travesseiros e colchões. A Paineira sabia que precisávamos de ficar quentinhos.
Existia uma recomendação expressa da minha mãe para não passarmos embaixo da Paineira na época das bolas verdes. Minha mãe entendia bem de massa de bolo. Tempo e velocidade, era o que assava o pão no forno de barro, que ficava bem perto da Paineira. Mas ela sabia que aquela bola verde, caindo de trinta metros de altura, se batesse na cabeça seria fatal. Quando o cheiro do pão assado se espalhava por debaixo da Paineira, toda a meninada sabia que lá vinha coisa boa. Pão quentinho, com manteiga feita em casa, que derretia e a gente se deliciava, ali mesmo, na sombra dela. Os dedos melados, colando de terra, limpando na roupa. Nossa! Ninguém sabia de colesterol, verminose. Hoje se sabe que um pouco de sujeira até melhora a imunidade. Acho que a minha mãe já sabia disso intuitivamente.
No período das flores, minha Paineira era a árvore mais bonita da cidade. Coberta de flores vermelhas com traçados brancos, reinava imponente sobre todas as outras árvores. As mangueiras, goiabeiras, laranjeiras, tangerineiras e limoeiros ficavam menores ante aquela personalidade vestida de rainha.
Minha Paineira valia mais que um jacarandá, apesar da sua madeira não servir para fazer móveis. Mas na minha lembrança ela foi a árvore mais importante com a qual pude conviver bem de pertinho. Sentava no chão encostado no seu tronco e observava a organização das formigas transportando as folhinhas cortadas. Sabia que elas se comunicavam e, para testar, fazia um risco fundo no chão, cortando o caminho delas. Elas começavam contornando o risco e depois de pouco tempo já tinham criado um novo caminho. Nem perdiam tempo de chegar perto do risco que eu tinha feito.
Ainda bem que não inventaram nenhuma árvore eletrônica para as crianças modernas.
Dê uma árvore para seu filho. Ele se lembrará dela pelo resto da vida