O texto (um fragmento de carta) abaixo, faz parte do livro “Fragmentos: cartas, diários e memórias de um estudante barra 70”, publicado em 2010, (graças a generosidade de meu amigo Jeremias Reis Pereira) e que escrevi para homenagear minha turma de faculdade, que está comemorando 40 anos da formatura.
Resolvi publicá-lo pela coincidência das datas, pela influência do episódio na minha vida e pelos temas abordados, que ainda rendem boa discussão.
“Sobradinho, 26 de abril de 1975
Agora são 8 horas da manhã e acabei de passar o plantão do pronto-socorro para o Arnaldo Stellini e a Malu. Não preguei o olho um minuto sequer.
Ontem, por volta de 19:30 horas, num plantão calmo, eu estava começando a atender a uma senhora de 60 anos de idade, muito tranquila, que se queixava de febre e mal estar, quando irrompeu sala adentro o maqueiro com um paciente aos gritos com intensas dores. Imediatamente fui socorrê-lo, fiz o diagnóstico de cólica nefrética e após medicação endovenosa o paciente melhorou rapidamente. Tinha por volta de 40 anos e ficou tão agradecido, que me senti muito envaidecido e poderoso.
Realmente os médicos tem muito poder. Talvez um dia a gente saiba usá-lo. Eu ainda não sou médico, estou no internato, um sextanista quase inofensivo, mas realmente me senti poderoso.
Orgulhoso com os agradecimentos que recebi daquele paciente, voltei ao atendimento da outra enferma, e notei que ela estava bem mais abatida do que quando comecei a consulta. Pedi ajuda à Socorro, R1 da Clínica Médica, que suspeitando de meningococcemia, logo chamou a Celeste, R2, e imediatamente foi introduzido o tratamento necessário, enquanto eram feitos os exames laboratoriais. Infelizmente, o quadro da paciente foi se tornando cada vez mais grave, evoluindo muito mal e muito rapidamente. No prazo de três horas ela faleceu.
Foram três horas angustiantes. O contínuo agravamento do quadro clínico e a evolução fatal, a despeito de terem sido adotadas todas as providências necessárias e da dedicação com que a paciente foi tratada, foi terrivelmente frustrante. Foi o primeiro óbito que ocorreu em um plantão meu. Tenho certeza de que nunca vou me esquecer da fisionomia daquela senhora pedindo ajuda com o olhar e da nossa incapacidade de conter evolução da doença. Quando foi constatado o óbito, a Celeste e a Socorro tinham lágrimas nos olhos. Nossos comentários a seguir foram de consolo mútuo. Acabara subitamente aquela sensação de poder que eu tive horas antes.
No sábado que vem, discutiremos o caso com a Professora Vanise Macedo. Participarão da reunião as residentes Celeste, Socorro, Tereza e Emmanuel e os internos barra 70: Rosete, Jeremias, Benavenuto, Agnaldo Antonio, Malu, Tatá, Eduardo Valverde, Arnaldo Stellini, Fernando Pardini e Magally Valle. A epidemia de meningite ainda preocupa muito.
O Brasil enfrentava uma epidemia de meningite de sérias proporções em 1974 e 1975. Nós percebíamos o problema pelo número de casos que apareciam no Hospital. Acontece que a ditadura havia censurado a divulgação de informações sobre a epidemia. As conseqüências foram gravíssimas, pois a desinformação fez com que muitas pessoas não valorizassem adequadamente seus sintomas e não procurassem auxílio médico a tempo, nem que se adotassem as medidas de prevenção necessárias. O governo só admitiu a epidemia quando ela alcançava taxas de incidência muito elevadas.
Em abril de 1975 foi realizado um programa de vacinação em massa da população, atingindo milhões de pessoas em poucos dias.”
Obrigado pelo seu carinho e generosidade, Professor.
Amigo Neto,
Ouça o conselho da Zaida. Você MERECE o Título de Doutor. Estou à disposição como sempre!
Abraços do
Domingo Braile
Neto, escreva seu doutorado com os fragmentos de suas memórias e histórias das ocorrências na saúde nos últimos 40 anos. Já cansei de falar isso. Só falta fundamentar com a literatura científica e publicar como artigos cada doença/agravo no decorrer das décadas, relacionando também a situação´sócio-política-profissional (histórica). Isso vc faz muito bem.
Neto, voce fazia um diário na época de sua formação, né?
É comovente nos seus relatos seus valores pessoais e profissionais e que manteve intactos seus valores humanísticos (que envolve conhecimentos, habilidades, ética e emoções), como pessoa e como profissional. Já nos profissionais da saúde, principalmente daqueles detentores de maior poder, o orgulho e a ganância têm sobrepujado a humanidade. Isso tem prejudicado a atenção em saúde e colocado o país muitas vezes como campeão de acidentes de trabalho, de trânsito, de cesáreas…de cobranças "por fora" a despeito do SUS e de convênios … , do que é ilegal, imoral e enojam…uma vergonha! Bjus, orgulho de ser sua irmã. Zaida
Prezado Neto.
Leio hoje o seu artigo, muito bem escrito. Parabéns! Veja a coincidência: ontem eu comentei aqui em casa sobre aquele período e fiz referência à quantidade de crianças que atendi, com o diagnóstico de meningite. Eu fazia internato no Hospital de Base e rodava na Unidade de Pediatria. Era um sufoco! Improvisavam-se leitos porque a quantidade de pacientes era uma grandeza! Lembro como aquelas crianças sofriam com as punções lombares que eu e os outros internos/residentes fazíamos. Éramos, especialmente os internos, "poderosos e medrosos": poderosos, pois fazíamos diagnósticos e conseguimos salvar muitas crianças; medrosos, pois ficávamos com muito medo de sermos contagiados pela avalanche da epidemia. Infelizmente também assinamos um bocado de atestados de óbito. Aquela primeira etapa do internato – na Unidade de Pediatria – foi um batismo de fogo! Caramba, isso já faz quase 40 anos…
Neto, não fui à reunião porque voltei muito cansado da fazenda.
Um abraço! Eloi.
Caro Neto, parabéns!
Artigo consistente e bem apropriado para o momento que convivemos com a Dengue.
Abraços
Roberto Douglas