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Maria Augusta Generoso Estrela foto de 1879 |
Até o terceiro quartil do século XIX, as duas únicas faculdades de medicina existentes no Brasil, a de Salvador e a do Rio de Janeiro somente admitiam homens como alunos. O acesso às mulheres era vedado. Na verdade, no século XIX, apenas eventualmente algumas mulheres conseguiam instrução secundária e se tornavam professoras de curso primário. A educação escolar da maioria delas parava no nível primário, pois a função primordial da mulher na sociedade era a de ser mãe e esposa. Na primeira metade do século XIX surgiram as primeiras escolas voltadas para a educação feminina, ainda assim com a preocupação de prepará-las para as tarefas e responsabilidades de seu futuro lar. O pensamento da época era o de que a mulher tinha sensibilidade, era destinada a ser o esteio do lar, a mãe extremosa, até porque o seu cérebro menor não a tornava apta para raciocínios abstratos e entender os mistérios da ciência. Mulheres médicas? Nem pensar!
A primeira médica brasileira foi uma desbravadora. Maria Augusta Generoso Estrela nasceu no Rio de Janeiro em 1860 e tinha inteligência superior. Decidida a ser médica enfrentou e venceu preconceitos e até barreiras legais para conseguir o que queria. Como lhe era vedado o acesso às faculdades de medicina no Brasil, Maria Augusta convenceu seus pais a lhe permitirem viajar aos EUA para tentar a matricula em uma das faculdades americanas, que já admitiam mulheres. Acontece que ela tinha menos de 16 anos e a idade mínima para ingresso era de 18 anos e a New York Medical College and Hospital for Women recusou sua matrícula. Inconformada, Maria Augusta conseguiu ser ouvida por um colegiado, que aquiesceu aos seus argumentos e ela foi em seguida submetida ao exame de suficiência para ingresso. Foi aprovada com distinção.
Seus estudos nos EUA foram bancados pelo Império brasileiro, por decreto do Imperador Pedro II. D. Pedro tomou essa iniciativa por conhecer a história de Maria Augusta e pelo fato de que o pai dela, não teve mais condições de mantê-la em Nova Yorque, por conta da falência da companhia que representava. Pelo decreto imperial, a bolsa foi de 100 mil reis mensais para a faculdade, mais 300 mil reis anuais para as despesas gerais.
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Propaganda de medicamento utilizando o prestígio de Maria Augusta |
O curso de medicina foi completado em 1879 e aí outro problema: Maria Augusta não tinha idade suficiente para receber o diploma. Teve que aguardar por mais dois anos, tempo que utilizou em estágios profissionais. Jornais brasileiros acompanharam e exaltaram sua saga e ela ficou conhecida e admirada no Brasil, tanto que em 1879, ainda estudante, seu nome foi utilizado para propaganda de um medicamento, explorando sua notoriedade. Um livreto com a biografia da ilustre estudante foi vendido em livrarias da Corte e de algumas províncias.
Em 1881, ainda nos EUA, fundou o jornal “A Mulher” com sua amiga Josefa Águeda Felisbella Mercedes de Oliveira que também se tornara estudante de medicina em Nova Iorque e que mais tarde seria médica em Pernambuco. Em um dos números desse periódico, “consagrado aos interesses e direitos da mulher brasileira”, elas escreveram o artigo “A mulher médica” no qual defendem o direito feminino de exercer a medicina, porém para atender especificamente a mulheres. Dizem elas:
“ Depois que a sciencia resolveu o problema de que a mulher é apta para os mesmos ramos scientíficos que o homem, ella entendeu dever aprender a sciencia medica para consolar e curar sua semelhante”.
Argumentam que a medicina exercida pela mulher para tratar outra mulher tem a dupla vantagem: a da ciência e a da moral e além disso:
“A mulher com outra não tem o acanhamento para revelar suas moléstias, suas misérias, suas faltas fisiológicas, que tem diante do homem”.
Dizem ainda:
“…conhecedores alguns médicos desta verdade moral e scientifica exploram ainda com a ignorância que predomina e dizem que a mulher é incapaz de ser medica! E, confiantes, desafiam os homens que tem a exclusividade da medicina
: “Elles que venham à tella da discussão scientifica e curvarão a cabeça diante da analyse anatômica.”
O artigo é fechado com este parágrafo, em que limitam sua atuação:
“Cure o homem ao homem, cure a mulher a mulher: é o que pede a moral e o que impõe as leis da igualdade: é o que querem e apreciam os homens verdadeiramente sinceros; moraes e sábios e amigos da educação da mulher.”
A finalmente graduada Doutora Maria Augusta Generoso Estrella voltou ao Brasil em 1882 e foi submetida a exames para validar seu diploma americano e conquistar o direito de exercer a profissão no Brasil. Isso só foi possível porque em 1879, o imperador havia emitido um decreto permitindo às mulheres o acesso ao ensino superior. É bem possível que a saga de Maria Augusta tenha influenciado o imperador a tomar essa medida, afinal ele custeara os estudos dela. A jovem doutora estabeleceu-se no Rio de Janeiro e atendia principalmente mulheres e crianças. Continuou enfrentando resistências e preconceitos e viu, por sua causa, o incremento de debates sobre a capacidade feminina para a medicina. Casou-se com um farmacêutico (ciumento, consta), e manteve sua clínica, mas passou a atender num consultório instalado na farmácia do marido. Teve cinco filhos. Mostrou que seu cérebro era capaz de fazê-la mãe extremosa, mas também médica dedicada e competente. Abriu caminhos, influenciou outras mulheres, rompeu com a exclusividade masculina. Faleceu em 1946, aos 86 anos de idade.
Post reeditado. Originalmente publicado em 08/03/15
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Adoro essa história! Minha mãe sempre contou para mim como forma de mostrar a força da mulher sábia, aquela que constrói sem ter que destruir nada. Minha mãe também seguiu seus passos. Foi a primeira da nossa linhagem à se formar, em 1954, foi motoqueira nos anos 50, coisa impossível à uma mulher… Tenho orgulho desse sobrenome, formado por homens e mulheres de brilho e força!
Adoro essa história! Minha mãe sempre contou para mim como forma de mostrar a força da mulher sábia, aquela que constrói sem ter que destruir nada. Minha mãe também seguiu seus passos. Foi a primeira da nossa linhagem à se formar, em 1954, foi motoqueira nos anos 50, coisa impossível à uma mulher… Tenho orgulho desse sobrenome, formado por homens e mulheres de brilho e força!
Obrigada. Belo artigo. Gostei muito de conhecer esta história.
Você me surpreendeu uma vez mais… Obrigada por fazer conhecida essa mulher e nos homenagear com esse artigo.
Rosângela