Paul Ehrlich e o 606: abrindo o caminho para a cura das doenças infecciosas:

A ciência somente descobriu que microorganismos causavam doenças no final do século XIX e até o início do século XX praticamente nada se conhecia ou se praticava com relação aos tratamentos médicos contra doenças infecciosas usando substâncias químicas. Os poucos medicamentos que eram conhecidos, como o quinino e mercúrio empregados no tratamento da malária e da sífilis respectivamente, eram usados de forma empírica. A incipiente indústria farmacêutica, entretanto, já começava a investir em pesquisa de substâncias com poder medicinal, em parte estimulada pelo sucesso da aspirina lançada comercialmente em 1900 pela Bayer. (1)

Paul Ehrlich (1854-1915)
Paul Ehrlich (1854-1915)
fonte: Wikipedia

No começo do século XX despontou o gênio do alemão Paul Ehrlich, que revolucionou a medicina, criando teorias e fazendo descobertas fundamentais que criaram as bases do conhecimento da hematologia e da imunologia. Suas pesquisas metódicas, rigorosas, e sua capacidade de teorizar permitiram que fosse encontrado o caminho para o combate às infecções, ao criar a substância arsphenamine, que recebeu os nomes de Salvarsan e 606 e que foi o primeiro medicamento “específico” capaz de agir contra o agente de uma infecção, no caso contra o Treponema pallidum, causador da sífilis.

Em 1899, Ehrlich começou a pesquisar a ação de corantes químicos em tripanossomíases. Ele já havia tentado em 1891 o azul de metileno, que acreditava ser melhor e mais barato que o quinino para o tratamento da malária, mas não obteve sucesso. (2) Em 1903, ele e Kiyoshi Siga descobriram o trypan red, um corante benzopurínico, de baixa toxidade e ativo contra os tripanossomas. Passou a trabalhar com derivados arsenicais, ao tomar conhecimento das propriedades do atoxyl (arsanilanato de sódio), que havia sido desenvolvido em 1905 por Wolferston Thomas e Anton Breinl de Liverpool, e que tinha ação sobre os tripanossomas. Grande parte das pesquisas com atoxyl foram feitas por Thomas no Brasil, na região norte. Em 1907, Adolfo Lutz testou a droga na ilha de Marajó em casos de uma tripanossomíase de animais, principalmente cavalos, chamada “quebrabunda” ou “mal das cadeiras. (3) (4) (5) (6)

O atoxyl era efetivo, porém tinha efeitos colaterais graves principalmente para o nervo óptico. Ehrlich conseguiu identificar sua estrutura química com o apoio do químico Alfred Bertheim, e passou a fazer modificações nessa estrutura na busca de novos compostos, mais efetivos e menos tóxicos. Produziu a arsacetina, por acetilação, que se mostrou capaz de eliminar treponemas, porém também tóxica para o nervo óptico. Continuou a realizar sucessivas e metódicas experiências modificando a estrutura química dos compostos arsenicais e no experimento de número 418 desenvolveu a arsenofenilglicina, com bons resultados contra tripanossomas nos testes com animais (5) e na qual o cientista alemão depositou grande esperança. Ehrlich considerava a arsenofenilglicina como um agente terapêutico que parecia ideal. Disse ele que esperava: “em qualquer espécie animal e para todos os tipos de infecção por tripanossoma conseguir a cura completa com uma única injeção, um resultado que corresponde ao que eu chamotherapia sterilisans magna”. (7)

A 606ª experiência de modificação da estrutura química do arsenical, em 1909, resultou no desenvolvimento da arsphenamine, que, nos testes que realizou com o auxílio do japonês Sahachiro Hata, apresentou eficácia no tratamento de aves infectadas com espiroquetas da febre recorrente. Testando a arsphenamina em coelhos infectados com Treponema pallidum, Ehrlich e Hata observaram a eliminação dos espiroquetas com uma só dose. Em seguida foram feitos testes com humanos e obtiveram bons resultados em casos de sífilis recente e febre recorrente, com aparente pouca toxidade. (8) (9) (5)

Paul Ehrlich e Sahachiro Hata
Paul Ehrlich e Sahachiro Hata
Fonte wikipedia

O anúncio desses resultados em 1910, no Congreso Científico de Koenigsberg, por Ehrlich, que tinha sido laureado recentemente com o prêmio Nobel de Fisiologia e medicina e gozava de grande prestígio no meio científico, provocou uma imediata reação de otimismo e uma enorme quantidade de pedidos da droga em todas as partes do mundo. A Hoeschst Chemical Works, que tinha os direitos da droga, iniciou a sua produção e a arsphenamina foi comercializada com o nome de Salvarsan. Ficou também conhecida pela denominação de “606”. (10) (2) Foi o primeiro medicamento específico contra um microorganismo produzido em laboratório e obteve recepção otimista por parte da imprensa médica e dos profissionais. (11) Ehrlich acreditava que, enfim, tinha conseguido a sua Therapia sterilizans magna, a Bala Mágica, a cura numa única dose.

O Salvarsan
O Salvarsan

Não conseguiu. Mas mostrou o caminho. E continuou melhorando suas pesquisas.

No próximo post continuaremos com o tema.

Referências

1. anonimo. A Incrível História da Droga Maravilha. Revista Eletrônica do Departamento de Química- UFSC. [Online] [Citado em: 01 de agosto de 2008.]
2. Thorburn, Lennox A. Paul Ehrlich: Pioneer of chemotherapy and cure by arsenic (1814-1915). British Journal Venereal Disease. 1983, Vol. 59, pp. 404-405.
3. Benchimol, Jaime L. Doutor Thomas: uma trajetória singular na medicina tropical anglo-afro-amazonica. XXVIII Simpósio Nacional de História. [Online] 2015. [Citado em: 2016.]
4. Quetel, Claude. The history of syphilis. Baltimore : Johns Hopkins Paperbacks, 1992. Traduzida para o inglês por Judith Braddock e Brian Pike do original francês Le Mal de Naples. Histoire de la Syphilis.
5. Reyna, Oscar Pamo. Paul Ehrlich: de las tinciones a las balas mágicas. Academia Nacional de Medicina Lima-Perú, Anales. 2004, Vol. 200, pp. 108-116.
6. Lutz, Adolfo. Viagens por terra de bichos e homens. Rio de Janeiro : Fiocruz, 2007. Benchimol e Sá (Org).
7. Ehrlich, Paul. Partial cell functions. Nobel Lecture, December 11, 1908 :304-320. [Online] [Citado em: 27 de julho de 2008.]
8. Jolliffe, A. A history of the use of arsenicals in man. Journal of the Royal Society of Medicine. May de 1993, Vol. 83, pp. 287-289.
9. Calvo, A. Ehrlich y el concepto de “bala mágica”. Revista Espanola de Quimioterapia. 2006, Vol. 19, 1, pp. 90-92.
10. Schwartz, Robert S. Paul Ehrlich´s Magic Bullets. New England Journal of Medicine. 2004, Vol. 350, 11, pp. 1079-1080.
11. Ross, JE e Tomkins, SM. The British Reception of Salvarsan. Journal of the History of Medicine. 1997, Vol. 52, pp. 398-423.  

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

Este post tem um comentário

  1. Unknown

    Muito interessante esse tema. Como cresceu a indústria farmacêutica, e como os efeitos colaterais continuam a ser tão expressivos. Parabéns por suas pesquisas e obrigada por momentos bons para usufruir delas.

Deixe seu comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.