Quando a sífilis apareceu na Europa no final do século XV, na forma de uma violenta epidemia, fonte de intenso sofrimento, logo surgiram os primeiros tratamentos considerados “específicos” para o seu combate: o mercúrio e o guaiaco.
Como as principais manifestações da sífilis eram cutâneas, as primeiras tentativas de tratamento foram com medicamentos utilizados para outras doenças de pele. Dentre esses medicamentos estava o Ungüento Sarracênico, recomendado por Guy de Chauliac desde 1363, que tinha o mercúrio (argentum vivo) na sua fórmula. O uso do mercúrio como forma de tratamento de doenças já era conhecido por Rhazes (850-925 d.C) e Ibn Sina (Avicena) (979-1037d.C.), expoentes da medicina árabe, de grande influência na medicina renascentista. Seu emprego era limitado pela gravidade dos efeitos colaterais que produzia.
Na falta de melhor opção e para fazer frente aos charlatães e empíricos que o empregavam largamente, o uso do mercúrio passou a ser feito sistematicamente pelos médicos, em doses cada vez maiores. Nos primeiros anos após o aparecimento da epidemia, as pomadas mercuriais eram empregadas de diversas formas principalmente como fricções e se tornou o tratamento preferido pela maioria dos médicos da época. Como o objetivo era expelir humores nocivos do organismo, os médicos incrementavam o tratamento promovendo situações que aumentavam a sudorese, como aplicar o mercúrio com a utilização de fornos e estufas. Uma das técnicas empregadas era untar todo o corpo do paciente com unguento mercurial em aposento superaquecido, por longo tempo. A utilização do mercúrio se devia à sua capacidade de provocar intensa salivação e diurese em doses tóxicas, proporcionando assim condições para que fossem eliminadas as matérias que corrompiam e desequilibravam os humores. Utilizavam-se também as fumigações, que eram feitas em uma cabine muito aquecida utilizando-se principalmente o cinnabar – sulfureto de mercúrio.
O genovês Johannis de Vigo (1460-1520), médico do papa Julio II publicou a obra “Practica in arte chirurgica copiosa” em que manifesta seu ceticismo quanto aos tratamentos sintomáticos preconizados por Galeno e Avicena, mas se mostra maravilhado quanto aos efeitos da aplicação de pequenas doses de mercúrio, que em uma semana era capaz de eliminar as dores, cicatrizar as úlceras e clarear as erupções. Foi possivelmente o introdutor do mercúrio na forma de emplastro, preparação que até pelo menos 1944, figurava ainda na farmacopéia brasileira, como nos relata o médico brasileiro Solis Torres em trabalho histórico sobre o mercúrio.
Os graves efeitos colaterais dos unguentos mercuriais provocavam resistências: já em 1497, Alexandri Benedetto relatava paralisias, amolecimento e perda dos dentes, Gaspar Torrella em 1498 responsabilizava o mercúrio pela morte de pacientes ilustres. Francisco Lopes de Villalobos, era radicalmente contra o emprego do mercúrio, a ponto de chamar de idiotas os seus defensores, embora admitisse seu uso nas lesões e em doses baixas. O aumento da salivação, sinal de intoxicação pelo mercúrio, era vista como meio de se eliminar a substância nociva da doença. Botaldus, em 1563 chegou a preconizar a quantidade de saliva a ser produzida para um tratamento efetivo: inicialmente 1 chopine (465ml) aumentando para 1 pinte (930 ml) após 5 ou 6 dias.
Quem também merece destaque como defensor do uso do mercúrio na sífilis é Philippus Theophrastus Aureplus Bombastus Von Hohenheim, auto-apelidado Paracelso, para ser comparado a Celso. Personagem importante do seu tempo, marcado por seu temperamento rebelde, místico, agressivo, que renegava o culto aos autores clássicos, tão caros aos médicos renascentistas, Paracelso foi pioneiro na tese de que as doenças poderiam ser causadas por agentes externos e que necessitavam de tratamentos específicos. Introduziu o uso de sais inorgânicos, metais e minerais nos tratamentos, argumentando que a dose empregada era o que definia se uma substância seria ou não tóxica. Empregou o mercúrio no tratamento do Mal Francês por via interna, não com o intuito de eliminar humores nocivos como preconizavam os métodos hipocráticos-galênicos, mas para combater diretamente o veneno causador da doença no organismo. Embora diversos historiadores apontem Paracelso como introdutor do mercúrio no tratamento da sífilis, na verdade o uso deste metal já era corrente quando ele apresentou suas teorias. Paracelso ainda tentou introduzir o arsênico como terapêutica específica, mas desistiu, pela ocorrência de reações fatais. Quase 400 anos depois, os sais de arsênico introduzidos por Paul Erlich representariam a primeira grande revolução no combate medicamentoso da sífilis.
O guáiaco era o medicamento que chegou a concorrer com o mercúrio pela “especificidade” na cura da lues. A resina utilizada no tratamento era extraída do cerne (denominado Lignum vitae) de uma árvore nativa do Caribe, o Guaiacum officinale, que, justamente por causa dessa suposta propriedade terapêutica, foi chamada de Holy Wood, Pau Santo, Madeira da Vida. Na época, parte da popularidade do guáiaco advinha da crença de que a sífilis era doença enviada por Deus como castigo à luxúria dos homens e que Ele havia colocado a cura no mesmo local de onde viera a moléstia, ou seja no Novo Mundo, hipótese mais aceita na época para a origem da doença. O guáiaco era utilizado como sudorífico, capaz de eliminar os fluidos corrompidos do organismo.
Seu uso foi popularizado a partir de 1519, através de outro personagem importante da história da Sífilis, Ulrich Von Hutten, que relata que estava a ponto de suicidar-se pelo sofrimento, quando experimentou o tratamento com guáiaco e diz ter se recuperado. Von Hutten morreu aos 35 anos em conseqüência da sífilis. O próprio Girolamo Fracastoro, a quem se deve o nome sífilis, em 1530 acrescentou um novo livro aos dois já existentes do seu livro “Syphilis sives morbus gallicus” para apresentar as qualidades do pau-santo, o guáiaco, por influência do cardeal Bembo, secretário do papa Leão X. Ajudando a fomentar a divulgação do Pau Santo como tratamento do Mal Francês, os banqueiros Fugger conseguiram exclusividade de importação dessa madeira do Novo Mundo e obtiveram enormes lucros com sua comercialização.
Jacques de Bittencourt, francês de Rouen, um dos autores pioneiros, publicou em 1527 uma obra de extenso nome: Nova penitentialis quadragesima, necnon purgatorium, in morbum gallicum, sive venereum, una cum dialogo aquae argenti, ac ligni gaiaci colluctanctium, super dicti morbi curationis praelatura opus fructiferum. Neste trabalho, Bittencourt apresenta o mercúrio e o guáiaco como personagens que descrevem suas virtudes em diálogo com o autor, a quem pedem para decidir qual deles é o melhor. O veredicto de Bittencourt é pelo mercúrio, que considerava como capaz de curar. Além disso, a dieta empregada como coadjuvante no tratamento pelo mercúrio era menos danosa do que a preconizada para o guáiaco, que exigia um jejum de 40 dias. Essa dieta rigorosa era devida ao fato de que o guáiaco era tido também como um tratamento penitencial, para fazer frente a uma doença adquirida pela devassidão.
O tratamento com mercúrio foi utilizado desde o aparecimento da doença na Europa, no final do século XV até meados do século XX. Foi o principal método de tratamento até 1910 quando Paul Ehrlich introduziu o Salvarsan e mesmo assim, continuou em uso até os anos 1950.
Referências
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