Bem-Te-Vi

O autor do texto abaixo é Rui A. Tavares da Costa, médico, colega da turma barra 70 e uma grande pessoa, tanto profissional quanto moralmente. E é também uma pessoa grande, que consegue espalhar sensibilidade e delicadeza nos seus 2 metros de altura. 
Há muita História na sua saudade.

Bem-te-vi (Memórias e saudades)

Rui Tavares
Bem-te-vi! Bem-te-vi! Cantava com entusiasmo logo pela manhã. Eu não o vi, mas ouvi e senti. Senti saudade lá de Guaraçaí. Eu acreditava que ele, o Bem-te-vi, tinha me visto. Por que minha mãe me falava, e eu acreditava. Enquanto ela lavava roupa, ali no quintal, eu balançava e ela cantava: Ave, Ave, Ave Maria. E, quando eu escutei esta música tocar, lá em Fátima, eu chorei. O Bem-te-vi não me fez chorar. Ele fez eu lembrar de um tempo inocente. Hoje o tempo está chuvoso, nuvens de saudade do bolinho de chuva. Do balanço que meu pai fez, especialmente para eu balançar, no galho da mangueira.
Quando as nuvens escureciam o céu, meu pai colocava a lenha embaixo do fogão. Assim minha mãe não teria trabalho para acender o fogo de madrugada, quando ele saia para o mato. Fazia logo o café, o almoço que ele levava no caldeirão com a tampa amarrada com um pano, para não derramar. O café ia numa garrafa, comum, nem tinha garrafa térmica. Tomava frio mesmo, porque ele, meu pai, era um “cafezeiro” nos dizeres da minha mãe.
Nem ela se queixava do horário, nem ele se lastimava do destino de caminhoneiro da floresta. Buscava todos os dias aquelas toras enormes, que eu gostava de andar por cima delas, já deitadas na serraria. O cheiro daquela madeira verde impregnou, de tal maneira, minha memória que o perfume de uma peroba faz eu voltar no tempo.
Não tinha beijos na despedida, mas o “Vai com Deus”, era sincero. E o Deus dele ia mesmo junto. Nunca foi picado de cobra e nem contraiu malária, muito comum na região do Rio Coroados, em Araçatuba.
O ronco do motor do caminhão fazia ela se apressar no calor do fogão. Dava para se ouvir bem longe. De tão intenso que deixou meu pai surdo, já na velhice. Ela atiçava o fogo para esquentar o jantar e eu rumava para a serraria, ali pertinho de casa, para ver ele chegar. Suado e com aquele cheiro bom de pai. Tirava o chapéu de feltro, que tenho um igual, e colocava na minha cabeça. Ficávamos orgulhosos quando tinha alguém por perto para dizer que nós nos parecíamos.
Descarregado o caminhão, meu pai despedia-se do Mário Gregório, seu ajudante que sofria de Mal de Parkinson e que, não conseguia outro emprego por causa da doença, nem ajudava muito, mas contava e escutava muito “causo” durante as viagens.
Eu ia orgulhoso sentado ao lado do meu pai, sentindo aquela mistura de odores de gasolina, óleo que queimava do motor e dos resíduos de madeira na carroceria. Uma mistura de cheiros grudados em meus neurônios que separo facilmente, cada um deles, em minha memória olfativa.
Enquanto meu pai tomava banho dava para eu correr um pouco pela rua, próximo de casa, até minha mãe gritar meu nome na porta da cozinha. Era hora de jantar e aproveitar as histórias do mato. O Pedrão, meu pai, era um grande contador de histórias. A que eu mais gostava era dele caçando cobra cascavel para vender para um japonês. Contou tantas vezes que eu sei, até hoje, de cor. Minha mãe ajudava pedindo para ele contar os causos engraçados. Ela ouvia mais uma vez e ria, balançando a barriga de italiana gorda. 

Rui é pediatra de mão cheia e autor do livro Consertador de menino.

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

Este post tem 4 comentários

  1. Neto Geraldes

    Na mosca, Paiva.

  2. Unknown

    Grande história. Senti os cheiros, os sons e as cores dessa meninice interiorana. Dá para perceber as emanações luminosas do afeto puro, da simplicidade e da beleza da vida, amplificados pelos sonhos e imaginação de menino. Parabéns, Rui.
    Seu colega Paiva.

  3. Rui Tavares

    Neto, a cidade de Guaraçaí, onde eu nasci e morei até 15 anos, fica na região noroeste do Estado de São Paulo. Localiza-se próximo de Andradina e uns 80 Km da Represa de Jupiá, no Rio Paraná. Fica mais próximo do Mato Grosso do Sul que do Paraná. Guaraçaí é o município que mais produz abacaxi do Estado de São Paulo.

  4. Neto Geraldes

    Olá Rui. Bonito texto! Guaraçaí fica mais para os lados do Paraná que Penápolis? Pra que lado ficavam esses matos de que vc fala?

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