O Mal Francês e os (incríveis?) tratamentos no século XVI

Gravura do livro de Joseph Grunpeck (1496).


O Mal Francês, um dos nomes da sífilis, apareceu na Europa no final do século XV como uma gravíssima epidemia que em poucos anos assolou todo o continente e que, nos primeiros tempos, se caracterizava pela gravidade do quadro clínico, pela evolução muito rápida e por provocar intenso sofrimento.

Os tratamentos empregados pelos médicos do século XVI podem parecer absurdos aos nossos olhos do século XXI, mas era assim o pensamento médico da época. O Morbo Gálico era visto, como todas as doenças, como resultado do desequilíbrio dos humores e cabia aos médicos identificar e eliminar a matéria corrompida ou corruptora do organismo. Valiam-se então de sudoríficos, laxantes, sangrias, dietas e cauterizações das feridas com ferro quente. Na verdade os médicos estavam atônitos, sem saber como fazer frente à doença desconhecida. Seus tratamentos frequentemente causavam mais sofrimento do que alívio. O grande número de doentes e o intenso sofrimento fizeram com que proliferassem os charlatães, audaciosos e que experimentavam vários tipos de tratamento.

O cavaleiro Joseph Grunpeck escreveu um livreto em que conta o seu sofrimento com a doença e que precisou recorrer a charlatães, sendo que um deles conseguiu melhorar sua doença friccionando pomadas de mercúrio diante de um forno quente. No seu relato, Grunpeck expõe seu desapontamento com os médicos, que não conseguiram curá-lo e “(mostram seu) desagrado com o mau cheiro que ofende o seu olfato acostumado a perfumes e em contaminar seus dedos, sempre aquecidos por constante contato com largas somas de ouro, obrigados a tocar tão sórdidas úlceras”

        Entre as formas de tratamento tentadas, apareciam algumas curiosas, como os banhos de imersão total em óleo de oliva. Esse tipo de tratamento deve ter feito algum sucesso, pois  em 1498 o Comitê de Saúde de Veneza foi obrigado a proibir a revenda de óleos nos quais as pessoas portadoras do Mal Francês haviam sido imersas, porque lá se encontravam “muitas imundícies”. Houve também a tentativa de vários outros tratamentos agressivos, como a cauterização das lesões primárias e secundárias com ferro em brasa ou a amarração da base do pênis, durante horas, para evitar que o veneno da doença se espalhasse pelo corpo, certamente sem sucesso.


O médico Gaspar Torrella relatou ter conseguido a cura de cinco pacientes com tratamento feito a base de purgativos, sangrias, sudoríficos, pílulas de celandina e aloe, e fricções com unguentos.  Um dos tratamentos que ele recomendava para o tratamento das úlceras penianas era cortar uma rã (viva) ao meio e passá-la no pênis. Uma alternativa seria envolver o pênis com a carne ainda quente de um frango ou pombo esfolados vivos e cortados em dois. Até o século XVIII houve quem recomendasse tal método.  Jeanselme no seu Traité de La Syphilis, de 1.931, considerava tal método terapêutico tão repugnante, “que sua pena se recusava a traduzir” esta parte do texto de Torella, que foi mantido em latim.

Torella, em 1497, provavelmente também foi o primeiro a recomendar a utilização da stufa sicca no tratamento do mal francês, técnica que se tornou comum no século XVI e que consistia em colocar pedras quentes sobre uma camada de areia no fundo de um recipiente, que podia ser um barril de vinho. Dentro desse barril era improvisado um assento perfurado, onde o doente permanecia sentado, submetido ao calor. A ideia  era provocar sudorese, com o objetivo de eliminar completamente os maus humores.

Francisco Lopes de Villallobos, outro importante médico renascentista, oferece uma receita para os casos que necessitam de tratamento mais forte: arsênico e enxofre amarelo, combinado com heléboro negro[1]e resina de pinho, que deviam ser misturados com cinza de alho,  incenso e mirra, toicinho de porco, babosa, níquel, mercúrio, óleo, suco de limão ou cidra, aplicado na forma de unguento. Trata-se da primeira referência ao emprego de arsênico na sífilis.


Gabriele Fallopio (1.523-1.562), anatomista italiano,[2]tinha também um remédio peculiar, que consistia em um pedaço de pano contendo uma mistura dos seguintes ingredientes: vinho, raspas de guáiaco, flocos de cobre, mercúrio precipitado, raiz de genciana, corais vermelhos, cinzas de marfim, chifre queimado de veado. Esse preparado deveria ser colocado sobre a glande logo após o ato sexual e ali permanecer por 4 ou 5 horas. Disse que usou isso em milhares de homens e chegou a jurar por Deus Todo-Poderoso que não houve nenhuma falha.

Num dos próximos posts falaremos sobre os tratamentos “específicos” dos primeiros tempos do Mal Francês um dos muitos nomes da sífilis. Clique aqui para ver um post sobre as denominações da sífilis.

 

Referências bibliográficas
Abraham, J J. Some account of the history of the treatment of syphilis. British Venereal Diseases. 1948, Vol. 24, 4, pp. 139-142
Arrizabalaga, J, Henderson, J e French, R. The Great Pox – The French Disease in Renaissance Europe. New Haven e London : Yale University Press, 1997.
Hayden, D. Genius, Madness and the Misteries of Syphilis. New York : Basic Books, 2003.
Jeanselme, E. Traité de la syphilis. Paris : G. Doin & Cie Editeurs, 1931.
Quetel, Claude. The history of syphilis. Baltimore : Johns Hopkins Paperbacks, 1992. Traduzida para o inglês por Judith Braddock e Brian Pike do original francês Le Mal de Naples. Histoire de la Syphilis

Villalobos, Francisco L. Tratado sobre las pestíferas bubas. [A. do livro] RH Major. Classical descriptions of disease. 3ª. Springfield : Charles C Thomas Publisher, 1965, pp. 17-19.



[1]Erva medicinal, tóxica, comum na medicina grega, empregada como purgante, para eliminar humores nocivos.
[2]Descreveu o conduto que liga os ovários ao útero, conhecidas como “Trompas de Fallopio”

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

Este post tem 2 comentários

  1. É por aí… Os fatos precisam ser analisados levando-se em conta as características de cada época.O arsênico, que Villallobos praticamente intuiu que era útil, no começo do século XX apareceu como uma revolução no tratamento da sífilis e hoje já está totalmente abandonado. O saber médico evoluiu passo a passo.

  2. Branco

    Pela observação, tentativa, avaliação etc produz-se a evolução do conhecimento.

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