A peste, que dizimou a Europa em meados do século XIV, provocando a morte de pelo menos um terço da população europeia, é conhecida hoje como Peste Negra ou Morte Negra, mas na época nenhuma dessas denominações era utilizada. Empregava-se com mais frequência os termos pestilência, pestenença, muitas vezes acompanhadas por adjetivos como imensa, infinita, terribilis, universalis que demonstravam sua gravidade e a percepção como catastrófica.
Podemos ter uma boa noção do pensamento médico daquele tempo pela análise do incunábulo[1] Regimento Proueytoso Contra ha Pestenença, que embora tenha sido impresso no final do século XV, foi baseado num texto de meados do século XIV escrito por um médico de Montpellier chamado Johannes Jacobi. O texto de abertura do livro, uma oração em latim já nos dá uma ideia da gravidade com que a peste era percebida: “Ora pro nobis sancta dei genitrix. Ut mereamur peste epydimie illesi transire et promissionem Christi optinere”, que numa tradução livre pode ser entendida como: “Rogai por nós, Santa Mãe de Deus, para que possamos passar ilesos pela epidemia de peste e sejamos dignos das promessas de Cristo.”
A doença era percebida como punição divina aos pecados dos homens e a busca do culpado, comportamento recorrente nas epidemias (observamos isso até hoje) era constante. São frequentes os relatos de massacres de judeus, que foram acusados de serem os causadores da peste. Foram exterminadas numerosas comunidades judaicas na Europa.
Guy de Chauliac, o mais conhecido dos médicos da época, escreveu a esse respeito: “Não se sabia qual a causa desta grande mortandade. Em alguns lugares pensava-se que os judeus haviam envenenado o mundo e por isso os mataram”.
O conhecimento médico da época apontava algumas causas para a pestilência, relacionadas ao conhecimento hipocrátrico, como esclarece o Regimento:
“Três são as causas da pestilência. Porque às vezes a pestilência procede da raiz superior. E às vezes procede da raiz inferior, em tal grau que por meio dos sentidos, parece aos homens mudança do ar. E às vezes vem de ambos, da raiz superior e da raiz inferior, juntamente”.
A peste tinha causas relacionadas à raiz superior, ou seja, tudo aquilo que se referia aos céus, universais, superiores, os corpos e fenômenos celestes corrompiam o ar e o envenenavam. Tinha também as causas relacionadas à raiz inferior, terrestres, próximas, particulares, ou causas tanto terrestres como celestiais, mas sempre submetidas a um desígnio sobrenatural, superior. Os corpos celestes tinham o poder de corromper o espírito vital dos homens. As causas da raiz inferior, terrestre, relacionada com maus cheiros, emanações, putrefações de corpos, dos brejos, das águas. Também era importante como causa o mau cheiro proveniente das latrinas (o termo privada com sentido de latrina já era empregado) que estivessem perto das câmeras (quarto de dormir), pois empeçonhentavam e corrompiam o ar respirado durante o sono.
Essa relação das emanações com as doenças é um conceito que vem desde os livros do Corpus Hipocraticum no século V a.C., especialmente do “Das águas, ares e lugares”, e deu origem à teoria dos miasmas que vigorou até o século XIX, só perdendo força teórica com o advento da teoria dos germes.
Algumas pessoas estariam mais suscetíveis a contrair a pestilência, entre eles os que tem “corpos desordenados em luxúria e coito. E os que vão amiúde aos banhos, e os homens que se muito esquentam com grande trabalho ou grande ira.”
Da parte do paciente, a vida em pecado, especialmente no pecado da luxúria, era um grande risco. Com relação aos banhos deve ter a mesma conotação, uma vez que os banhos públicos que na Idade Média eram relacionados mais à diversão do que à higiene. Foi justamente por causa da Peste Negra, e muito pela ação dos médicos, que os banhos públicos acabaram por desaparecer nos séculos XVI e XVII.
Alguns sinais climáticos eram vistos como favoráveis ao aparecimento da peste: manhã chuvosa, depois com ventos, dias nublados que ameaçam chuva sem chover, quando vinham muitos ventos do meio dia, “porque tais ventosidades são muito sujas e velhacas”. Outros sinais que prenunciariam a peste eram o surgimento de cometas no céu e os ambientes com muitas moscas.
A percepção de que a peste poderia ser transmitida de uma pessoa a outra está presente no relato do monge Michele Piazza de Messina: “Devido a uma infecção do hálito que se espalhou em torno deles enquanto falavam um infectava o outro… e não só faziam morrer quem quer que falasse com eles como também quem quer que comprasse, tocasse ou tirasse alguma coisa que lhes pertencesse.” Deve-se ressaltar que os médicos da época tinham a noção de contágio, mas não de infecção. Substâncias externas, venenos, ar viciado, poderiam de alguma forma penetrar no organismo e corromper os humores.
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Referências
1. ARRIZABALAGA, J. La Peste Negra de 1348: los orígenes de la construcción como enfermedad de una calamidad social. Acta Hispanica ad Medicinae Scientiammque Historiam Illustrandam. 1991, Vol. 11, pp. 73-117.
2. ROSA, M.C. Em torno de dois textos médicos antigos. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. 2005, Vol. 12, 3, pp. 771-774.
3. SOUZA, J. M. e COSTA, R. Regimento proveitoso contra a pestilência (c. 1496) – uma apresentação. Historia Ciência, Saúde-Manguinhos. 2005, Vol. 12, 3, pp. 841-51.
4. SILVA, A.M. Elementos para compreender a modernidade do corpo numa sociedade racional. Cadernos Cedes. 1999, Vol. 19, 48, pp. 7-29.
5. CZERESNIA, D. Do contágio à transmissão: uma mudança na estrutura perceptiva de apreensão da epidemia. História, Ciências, Saúde-Manguinhos. 1997, Vol. 4, 1, pp. 75-94.
6. KUSUGAWA, S. 2004. Medicine in Western Europe in 1500. [A. do livro] P. ELMER. The healing arts: disease and society in Europe, 1500-1800. Manchester : Manchester University Press, 2004, pp. 1-26.
7. LE GOFF, J. 1987. O homem medieval. [trad.] M.J.V. FIGUEIREDO. Lisboa : Editorial Presença, 1987. pp. 27-28.
[1] Incunábulo é a denominação dada aos livros impressos logo após a invenção da imprensa. Convencionou-se chamar de incunábulo as obras impressas antes de 1500.