Schaudinn: enfim a descoberta do micróbio da sífilis

Ilustração do Spirochaete pallida apresentada por Schaudinn
 em seu trabalho de 1905



Desde o final do século XIX, com a consolidação da teoria dos germes, ou seja de que doenças infecciosas eram provocadas pela ação de micro-organismos, havia a convicção no meio científico de que a sífilis era uma dessas doenças e a procura por seu agente etiológico tornou-se intensa. Numerosos cientistas apresentaram bactérias, protozoários e outros micróbios como sendo a causa da sífilis que depois não foram confirmados.

Em fevereiro de 1.905, o professor Franz Eilhard Schulze da Universidade de Berlim, muito influente, anunciou que seu assistente, o também alemão John Siegel, havia descoberto o micro-organismo causador da sífilis, batizado como Cytorrhyctes luis. Siegel defendia que os agentes etiológicos da varíola/vacinia, da doença pé-boca, da escarlatina e da sífilis eram protozoários pertencentes a um gênero que ele chamou de Cytorrhyctes.    Por conta do prestígio de Schulze, o Serviço Imperial de Saúde alemão resolveu criar uma comissão para confirmar os achados de Siegel, para a qual foram nomeados o sifilologista Erich Hoffmann, o bacteriologista Fred Neufeld e o jovem zoologista Fritz Schaudinn, que também havia sido discípulo de Schulze. Schaudinn era especialista em protozoários, de reconhecida capacidade. Foi ele quem, em 1.903, identificou e nomeou a Entamoeba histolytica como espécie diferente da Amoeba coli, à qual denominou como Entamoeba coli.
 

Fritz Schaudinn

 Logo nos primeiros dias de trabalho, mais especificamente no dia 03 de março de 1.905, examinando esfregaços colhidos por Hoffmann de lesões papulosas secundárias, inicialmente sem coloração, Schaudinn visualizou micro-organismos em forma de espiral, pequenos, delicados, móveis e de difícil identificação, mas diferentes das espiroquetas que já eram conhecidas naquela época e que eram melhor observados quando corados pelo método de Giemsa, com modificações. Dias depois, encontrou esses mesmos micróbios em material obtido de gânglios, cancros e lesões de sífilis secundária. Imediatamente, Schaudinn e Hoffmann publicaram um artigo relatando que esse germe em espiral, que eles chamaram de Spirochaete pallida, era encontrado no material proveniente de lesões sifilíticas e somente nessas lesões. Evitaram a princípio, todavia, atribuir-lhe papel etiológico. Posteriormente, em outubro de 1.905, eles alteraram a denominação para Treponema pallidum, classificando o micro-organismo em um novo gênero.
Na verdade, havia grande ceticismo no meio médico alemão com relação à descoberta dos pretensos agentes etiológicos da sífilis. Schaudinn e Hoffmann encontraram um ambiente francamente hostil nas reuniões da Sociedade Médica de Berlim em 17 e 24 de maio de 1.905, quando demonstraram os resultados de suas investigações. Tal hostililidade já se manifestava pela recusa do presidente desses encontros, Ernst Von Bergmann, um cirurgião de grande prestígio, em confrontar os trabalhos de Siegel e Schaudinn, limitando-se a discutir apenas o de Schaudinn. Justificou ironicamente esta decisão, dizendo que já era suficiente lidar com apenas um suposto agente da sífilis. No mesmo tom, Oskar Lassar lembrou que foram apresentados 25 hipotéticos agentes da sífilis 25 anos anteriores.
Naquela reunião houve muita resistência da platéia em aceitar a descoberta de Schaudinn. Houve quem atribuísse a artefatos técnicos a visualização das formas espiraladas e quem contestasse a possibilidade de um protozoário (tanto Schaudinn como Siegel acreditavam que o agente da doença era um protista) e não uma bactéria ser a causa da sífilis. Mantendo o sarcasmo, Von Bergmann declarou o fim da reunião “até que outro agente responsável pela sífilis desperte nosso interesse” 
Apesar do ceticismo inicial, imediatamente começaram a aparecer confirmações do achado de Schaudinn e Hoffmann. Ainda em 1.905, mais de uma centena de cientistas já haviam constatado a presença do espiroqueta em lesões sifilíticas. Metchinikoff e Roux encontraram o treponema em macacos infectados experimentalmente. 
 Sifilógrafos de várias partes da Europa concordaram com o papel etiológico desse micróbio na sífilis. Em abril de 1.906, Schaudinn foi aclamado no Congresso Médico Internacional de Lisboa, mas não teve como usufruir desse reconhecimento. Aos 34 anos de idade, na sua viagem de volta para Hamburgo, teve que ser submetido a uma cirurgia de emergência, a bordo do navio em que viajava, para drenagem de um abscesso amebiano pararretal, e morreu em consequência da septicemia que se seguiu ao procedimento. 


Referências bibliográficas
1. Lindenmann, Jean. Siegel, Schaudinn, Fleck and the etiology of syphilis. Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences. 2001, Vol. 32, 3, pp. 435-455.
2. Souza, Elemir M. Há 100 anos, a descoberta do Treponema pallidum. Anais Brasileiros de Dermatologia. 2005, Vol. 80, 5, pp. 547-548.
3. Pinilla, Análida Elizabeth, López, Myriam Consuelo e Viasus, Diego Fernando. Historia del protozoo Entamoeba histolytica. Revista Medica de Chile. 2008, Vol. 136, 1, pp. 118-124.
4. Quetel, Claude. The history of syphilis. Baltimore : Johns Hopkins Paperbacks, 1992. Traduzida para o inglês por Judith Braddock e Brian Pike do original francês Le Mal de Naples. Histoire de la Syphilis..
5. Thorburn, A. Lennox. Fritz Richard Schaudinn, 1871-1906: Protozoologist of syphilis. British Journal of Venereal Diseases. 1971, Vol. 47, p. 459:461.
6. Waugh, Michael. The centenary of Treponema pallidum: On the Discovery of Spirochaeta pallida. Skinmed. 4, 2005, Vol. 5, pp. 313-315.
7. McWeeney, E. J. Spirochaetae in syphilis. British Medical Journal. 10 de june de 1905, Vol. 1, pp. 1262-1263.

Neto Geraldes

Um novo historiador que gosta da medicina e um velho médico que gosta da história.

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